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EducaçãoAntirracistacom gosto de dendê e cheiro de pitanga:orí-entações pedagógicas negrorreferenciadasMESA DIRETORAASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DA BAHIApresidênciaDeputado Adolfo Menezes1ª vice-presidênciaDeputado Zé Raimundo2ª vice-presidênciaDeputado Marquinho Viana3ª vice-presidênciaDeputado Antônio Henrique Júnior4ª vice-presidênciaDeputado Laerte do Vando1ª secretariaDeputado Marcelinho Veiga2ª secretariaDeputado Samuel Júnior3ª secretariaDeputado Vitor Azevedo4ª secretariaDeputado ZósuplentesMaria Del Carmen Soane Galvão Claudia Oliveira Robinho Jurailton Ramoschefe da assessoria de comunicação socialPaulo BinaEducaçãoAntirracistaRégia Mabel da S. FreitasorganizadoraSalvador2023com gosto de dendê e cheiro de pitanga:orí-entações pedagógicas negrorreferenciadasASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DA BAHIAPalácio Dep. Luis Eduardo Magalhães, 1ª avenida, 130CEP: 41.745-001, CAB, Salvador, Bahia | Telefone: (71) 3115-4910E-mail: cerimonial@alba.ba.gov.br | www.alba.ba.gov.br Produção Editorialeditor: Paulo Binaassistentes editoriais: Alexsandro Mateus dos Santos, Bira Paim e Idalina Vilasbôasorganizadora: Régia Mabel da S. Freitasprojeto gráfico e diagramação: P55 Ediçãocapa: Erick AugustoCopyright © by Régia Mabel da S. FreitasDireitos desta edição reservados àassembleia legislativa da bahiaeducação antirracistaFicha catalográficaIracilda R. Nunes CRB 5/832Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)E24e Educação antirracista / organização de Mabel Freitas – Salvador : Assembleia Legislativa, 2023. 420 p.ISBN: 978-65-86194-20-3 1.Racismo – Artigos - Bahia. I. Freitas, Mabel,Organizador. II. Bahia. Assembleia Legislativa. III. Título. Cdd 305.8Escrevivências de docentes antirracistasApresentação | 11Régia Mabel da Silva FreitasPrefácio | 13Quem tem medo da Lei nº 10.639/03?Erico José Souza de OliveiraO pretagonismo cênico-pedagógico antirracista do Teatro Negro brasileiro | 29Régia Mabel da S. FreitasO negro no canto lírico brasileiro | 57Irma FerreiraCorpo e Dança na infância: práticas afrorreferenciadas no ensino | 79Lissandra Patrícia Conceição dos SantosO racismo ao pé do berimbau: ou quando a Educação Física entra na roda de Capoeira | 95Bruno Rodolfo MartinsVinte anos da Lei nº 10.639 e possibilidades (de)coloniais na área de Linguagens: uma escrevivência | 129Fabiana LimaO perigo da hegemonia no ensino de Língua Inglesa (EUA/Europa): ensinando o inglês a partir da perspectiva afrorreferenciada no chão da sala de aula | 153Dinalva Marreiro Pereira TodãoA história da Matemática e a Lei nº 10.639/03 | 171Jefferson Todão dos SantosO ensino e a divulgação da Astronomia e da Física em perspectiva antirracista | 191Alan Alves-BritoEnsino de Química numa perspectiva negrorreferenciada | 211Anna Canavarro Benite e Marysson Jonas Rodrigues CamargoO que o ensino de Ciências tem a aprender com a Educação Escolar Quilombola? | 237Carolina Cavalcanti do NascimentoCiência, tecnologia e inovação africana | 263Carlos Eduardo Dias MachadoPor um ensino de Geografia antirracista | 293Renato Emerson dos SantosEnsaio sobre perspectivas teórico-críticas da colonialidade para uma democracia racial a partir da realidade brasileira | 309Tiago Silva de FreitasElementos para um programa de justiça comunitária/ restaurativa libertária de base africana | 329Sérgio São BernardoPlêiade antirracista | 355Camaradas, para continuar a desenvolver vitoriosamente a nossa luta, devemos: co-nhecer bem as nossas próprias forças, ter, em cada momento, uma consciência perfei-ta das coisas que podemos fazer e das que ainda não podemos fazer. Avaliar bem as nossas possibilidades em cada área [...], agir sempre de acordo com essas possibilidades e fazer tudo para melhorar as nossas forças e a nossa capacidade. [...] Nunca fazer menos do que podemos e devemos fazer.1 1 PARTIDO AFRICANO PARA A INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ E CABO VERDE. Palavras de ordem gerais. [S. l.: s. n.], 1965.(Cabral, 1965, p. 13)ApresentaçãoEsta coletânea, redigida por uma plêiade intelectual antirracista que possui o privilégio ancestral de ter na pele a cor da noite, refu-ta a universalidade da suposta supremacia cognitiva da Europa em detrimento da sapiência pluriversal do continente a que devemos origens abissais: a África. Em contraposição à bússola da hege-monia científica colonialesca, docentes que promovem Educação Antirracista em distintas regiões brasileiras (Centro-Oeste, Nor-deste, Sudeste e Sul) encruzilham nesta obra caleidoscópicas ORÍ1 -entações pedagógicas negrorreferenciadas.As epistemes revisitam afrontosa e dialeticamente as falácias da historiografia negra no pré-trans-pós-13 de maio de 1888, con-templando matrizes curriculares da Educação Básica à Superior lastreadas pela Lei nº 10.639/2003 e pelo Parecer Normativo do Con-selho Nacional de Educação nº 003/2004. As autoras e os autores trasladam com maestria por quatro áreas do conhecimento – Lin-guagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas –, descortinando olhares ainda obtusos sobre saberes e fazeres hierar-quizantes e enaltecendo intelectualidades azeviches. Neste livro, as populações negras são apresentadas como preta-gonistas de uma história longa de lutas e conquistas, que edifica(ra)m 1 Cabeça, em iorubá.Régia Mabel da Silva FreitasOrganizadoracom engenhosidade um resiliente manancial de conhecimentos nos âmbitos artísticos, científicos, culturais, filosóficos, históricos, políticos e sociais na diáspora africana. Como bem ensina a imor-tal Conceição Evaristo, a nossa fala estilhaça a máscara do silêncio, visto que as nossas escrevivências incomodam as pessoas da casa--grande em seus sonos injustos ante os 135 anos de assinatura da Lei PseudoAbolicionista, dita Áurea, nº 3.353/1888.Ẹ KÚ ÀBỌ2, caras leitoras e caros leitores, a este compêndio que tem o gosto do dendê – óleo vegetal presente na culinária afri-cana e afro-brasileira que dá à comida sabor, cor e aroma peculiares – e o cheiro intenso, fresco e marcante da genuinamente brasilei-ra pitanga, que inspira e estimula a criatividade! Vamos fanoniar, borrifando o mundo com nossa potência poética e libertando-nos do arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial, para combater nos mais distintos espaços formativos o racismo e suas interseccionalidades. Afinal, Educação é um direito social e Educação Antirracista é um dever formativo ancestral.2 Boas-vindas, em iorubá.EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA12Prefácio Quem tem medo da Lei nº 10.639/03?Erico José Souza de Oliveira1São vinte anos da Lei nº 10.639/03!!! VINTE ANOS!!!É preciso enfatizar veementemente e com letras garrafais o pas-sar desse tempo, pois, até hoje, o que constatamos é que a sua aplicabilidade está muito aquém do desejado e em constante ba-talha por uma efetiva incorporação aos universos escolar (Ensino Básico público e privado) e universitário. Mas por que será que essa lei tão sintética que institui o estudo das histórias e cultu-ras da África e afro-brasileira sofre tanta rejeição no âmbito do ensino formal? Ou melhor, quem tem medo da Lei nº10.639/03? Antes de adentrar nessas questões, é preciso materializá-la, visto 1 Professor titular do Departamento de Artes Cênicas (CEN) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGCEN) da Universidade de Brasília (UnB). Autor do livro A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado-PE), pelo SESC--Pernambuco (2006), e organizador dos livros Matrizes estéticas na cena contem-porânea: diálogos entre culturas, práticas, pesquisas e processos cênicos (Edufba, 2021) e Artes cênicas e decolonialidade: conceitos, fundamentos, pedagogias e práticas (E-Manuscrito, 2022). Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Poéticas, Processos e Pedagogias da Encenaçãode William Shakespeare, no qual ao pretagonismo de realezas e fadas negras foram mesclados elementos das cul-turas africana e afro-brasileira. / Balada de amor ao vento, da escritora moçambicana, primeira ganhadora africana do Prê-mio Camões17 em 2021, porém só entregue em 2023, Paulina Chiziane – história de amor repleta de (des)encontros numa sociedade patriarcal;• Já fui (1999): comportamento humano no trânsito das vias urbanas, refletindo sobre arquétipos, como motociclistas, mo-toristas (homens e mulheres), transeuntes etc. / O que é racis-mo recreativo?, do doutor em Direito Constitucional Compa-rado Adilson Moreira – episódios de racismo expressos com suposto humor pautados em opressões depreciativas contra determinados grupos subalternizados;• Material Fatzer (2001): individualismo e solidariedade abor-dados através de quatro soldados que optam pela deserção após lutarem quatro anos numa guerra – texto inspirado em drama-turgias alemães de Bertolt Brecht (O declínio do egoísta Johann Fatzer), Heiner Müller e Peter Palitzsch. / Voltar para casa, da escritora estadunidense, primeira negra a ganhar o Prêmio No-bel de Literatura18, doutora honoris causa pela Universidade de Oxford e pela Universidade de Rutgers Toni Morrison – jovem que lutou numa guerra na Coreia volta para casa, reencontran-do o seu passado e a sua imensa força interior outrora desacre-ditada;• Relato de uma guerra que (não) acabou (2002): lutas e en-frentamentos cotidianos de negras/os para ter o direito à vida durante a greve das polícias civil e militar em 2001. / O genocídio do negro brasileiro, do doutor honoris causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal da 17 Maior premiação literária para autoras/es lusófonas/os.18 Prêmio literário sueco de maior prestígio do mundo.50EDUCAÇÃO ANTIRRACISTABahia (UFBA), Universidade de Brasília (UnB), Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da nigeriana Universidade Oba-femi Awolowo Abdias Nascimento – combate ao mito da de-mocracia, apontando outras mortes – nada simbólicas! – das populações negras pelo vieses cultural, econômico, religioso entre outros;• Oxente, cordel de novo? (2003): três peças diferentes contam histórias inspiradas da cultura popular a partir de peças de cor-del (nove de João Augusto e uma de Haydil Linhares). / Contos crioulos da Bahia, do maior escultor negro baiano Deoscore-des Maximiano dos Santos, mais conhecido como Mestre Didi – compilado de contos da cultura nagô transmitidos de forma geracional pela oralidade que desvelam saberes ancestrais;• O Muro (2004): estudantes de uma escola pública situada próxima a um lixão – local onde resíduos sólidos são descarta-dos inadequadamente a céu aberto – passam a merenda escolar para matar a fome de familiares por cima de um muro que, após ser aumentado pela gestão escolar como tentativa de coibir a prática, acaba desabando. / Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil, da doutora em Educação Eliane Cavalleiro – racismo nas relações sociais (escola, família, sociedade entre outras), questionando o papel da escola na formação cidadã das/os estudantes desde a mais tenra idade;• Autorretrato aos 40 (2004): samba-enredo em comemoração aos 40 anos do Teatro Vila Velha dramatizado por todos os gru-pos residentes. / O baobá dos valores civilizatórios afro-brasilei-ros, da doutora em Comunicação e Cultura Azoilda Trindade – importância dos valores civilizatórios afro-brasileiros para as nossas identidades negras;• Áfricas (2006): lendas e contos da cultura africana, exaltando a exuberante diversidade de saberes ancestrais do continente 51RÉGIA MABEL DA S. FREITASa que devemos origens abissais. / África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no cotidiano brasileiro, do caribenho doutor em Ciências Humanas e Etnologia Carlos Mo-ore – legado africano no cotidiano político, educativo e interna-cional diaspórico;• Bença (2010): ancestralidade, morte, religiosidade e tempo discutidos à luz da sabedoria de mestras/es populares que in-teragem virtualmente com as/os artistas em cena. / Owé19, da doutora honoris causa pela UFBA e UNEB ialorixá Mãe Stella de Oxóssi – coletânea de provérbios iorubanos e brasileiros in-terpretados pela autora;• Dô20 (2012): escrevivências corporificadas através de ges-tos nipônicos contidos e afro-baianos explosivos de histórias individuais e identitárias. / Becos da memória, da doutora em Literatura Comparada Conceição Evaristo – múltiplas narra-tivas reais-inventadas encruzilham seus grilhões escravagistas numa (não...) ficcional favela;• Erê (2015): genocídio de jovens negras/os, relações familia-res, violência nacional, segurança pública, maioridade penal, Lei nº10.639/03 e racismo na mídia. / Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro, da dou-tora em Direito Ana Flauzina – mortes cotidianas de corpos ne-gros naturalizadas no suposto Estado Democrático de Direito;• Resistência Cabocla21 (2023): narrativa contracolonial acer-ca da importância do heroísmo de indígenas, mulheres e po-pulações negras para a vitória da Independência do Brasil na Bahia em comemoração ao bicentenário. / O perigo de uma 19 Provérbios, em iorubá.20 Movimento, em japonês. O espetáculo foi dirigido por Tadashi Endo – Mestre do butô (técnica de teatro-dança).21 Tive o privilégio de ser a dramaturgista deste espetáculo, realizando a pesquisa histórico--discursiva para instrumentalizar conceitualmente as/os artistas.52EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAhistória única, da nigeriana mestra em Escrita Criativa e em Artes e Estudos Africanos Chimamanda Adichie – a importân-cia de narrativas diversas sob plurais perspectivas para o nosso aprofundamento cultural sem a tão corriqueira incompletude estereotipada criada pelos devaneios caucasianos.Enfim, Nascimento (2023), ante tamanha engenhosidade aze-viche dramatúrgica em nível nacional e internacional, excluir a/o negra/o de seu centro vital só realmente por cegueira ou deforma-ção da realidade. Como nos ensina Martins (1995, p.196), o Teatro Negro fende a fala e a imagem estereotípicas, erigin-do, em seu anverso, um discurso que, em todos os seus ma-tizes, prima pela eleição de uma enunciação demitificadora, revelando no eu do sujeito que se encena esse outro que o constitui, decora e alumbra.Afinal, essa tessitura textual é sempre didaticamente antirra-cista e contracolonialmente pedagógica22.Cena finalVoz off: Os professores progressistas que trabalham para transformar o currículo de tal modo que ele não reforce os sistemas de dominação nem reflita mais nenhuma parciali-dade são, em geral, os indivíduos mais dispostos a correr os riscos acarretados pela pedagogia engajada e fazer de sua prática de ensino um foco de resistência.bell hooks (2017, p. 36).22 O livro Artes cênicas e decolonialidade: conceitos, fundamentos, pedagogias e práticas, no qual assino o capítulo “Teatro Negro brasileiro: a higienização de anacrônicas manchas eurocêntricas através de insurreições cênicas” também insufla o debate acerca do ensino das artes da cena avesso à métrica colonialesca. O e-book está acessível no seguinte link: https://emanuscrito.com.br/img/dummies/ArtescenicasPDF.pdf. 53RÉGIA MABEL DA S. FREITASA Educação Antirracista deve ser promovida de forma descalen-darizada nos universos formativos (escolar e acadêmico), porque, nesses recintos privilegiados de construção e difusão de novas cosmopercepções do presente e do passado, devemos vislumbrar equitativos futuros possíveis no que tange às questões da preti-dão no pré-trans-pós-13 de maio de 1888. Anualmente, restringir essa discussão para o 13 de maio (Assinatura de Lei Áurea), o 25 de julho (Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha) e o 20 de novembro (Dia Nacional da Consciência Ne-gra) é mitigaros nossos tão necessários contínuos afroprocessos de ensinâncias e aprendências. À luz do Teatro Negro brasileiro é possível promover uma Edu-cação Antirracista da Educação Básica à Superior nas Aulas de Ar-tes, implementando com efetividade a Lei nº10.639/03 e o Parecer Normativo do Conselho Nacional de Educação nº003/2004. Como legítimos espaços multirreferenciais de aprendizagem de organi-zação, produção, difusão e acervação de saberes azeviches para artistas e plateias, a partir do didatismo das insurreições cênicas (peças), esses grupos teatrais se propõem a Ler(kawe) afrossabe-res sobre nosso genuíno pretagonismo, Dizer (wéfun) textos ne-grorreferenciados contracoloniais para Transformar (yépada) o ainda vigente regime opressivo branco-ocidental racista. As dramaturgias descortinam olhares obtusos acerca das po-pulações negras, visto que apresentam, sem qualquer conotação pejorativa nem apresentação de papéis brejeiros, as/os artistas que possuem o privilégio de ter na pele a cor da noite, estrelando um discurso repleto de picardia sobre experiências afrodiásporas, notabilizando a nossa resiliente historiografia e dignificando as culturas africanas e/ou afro-brasileira. Enfim, por meio da mili-tância negrocênica, ampliam o repertório cultural sobre questões 54EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAraciais no que tange aspectos cognoscitivos e relacionais a partir de saberes identitários, políticos e estético-corporais, estimulando os binômios poder-saber e refletir-agir.Parafraseando o poema “Ainda assim eu me levanto”, da es-critora estadunidense Maya Angelou, apesar de a perversidade caucasiana tentar riscar-nos da história com mentiras lançadas ao ar, atirar-nos palavras afiadas, dilacerar-nos com o olhar, in-comodar-se com nossa presença, intimidar-se com nosso brilho, também, pela engenhosidade dramatúrgica do Teatro Negro bra-sileiro, vamos sempre levantar. Afinal, somos oceanos negros que carregamos honrosamente o dom das/os antepassadas/os e reali-zamos os sonhos e as esperanças dos nossos povos outrora escra-vizados.Patrocinadores conceituaisBARROS, O. de. Corações de Chocolat. A História da Companhia Negra de Revistas (1926-1927). Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2005.BRASIL. Lei nº10.639, de 9 de janeiro de 2003. Institui a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temá-tica História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 140, n.8, p.1, 10 jan. 2003. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=10/01/2003& totalArquivos=56. Acesso em: 29 dez. 2017. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educa-ção. Parecer CNE/CP nº03/2004, de 10 de março de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasi-55RÉGIA MABEL DA S. FREITASleira e Africana. Diário Oficial da União: seção 1, ano 141, n.95, Brasília, DF, 19 maio 2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf. Acesso em: 13 jun. 2022.CARNEIRO, A. S. A construção do Outro como Não Ser como fundamento do Ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.COLL, C. et al. Os conteúdos na reforma: ensino e aprendiza-gem de conceitos, procedimentos e atitudes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.DAVIS, A. A liberdade é uma luta constante. São Paulo, 2019. Palestra proferida no Parque do Ibirapuera. DOMINGUES, P. A crisálida do Teatro Negro no Brasil. Ensaios, Brasília, DF, p.52-53, 2023. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/sites/000/2/download/revista3/revista3-52.pdf. Acesso em: 17 abr. 2023.FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.FREITAS, R. M. da S. A Orquestra Afropercussiva de Notas Ne-gro-Dramatúrgicas do Bando de Teatro Olodum sob a regên-cia do maestro Erê. 2019. Tese (Doutorado em Difusão do Co-nhecimento) – Programa Multidisciplinar e Multi-Institucional em Difusão do Conhecimento, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019.FREITAS, R. M. da S. Bando de Teatro Olodum: uma política social in cena. Recife: EdUFPE, 2015.56EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAGOMES, R. A. Dicionário Yorùbá. [S.l.:s.n.], [201-]. Disponível em: http://awure.jor.br/home/dicionario-ioruba-2/. Acesso em: 19 maio 2018.HOOKS, b. Liberdade. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. MARTINS, L. M. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.NASCIMENTO, A. do. Axés do sangue e da esperança: Orikis. Rio de Janeiro: Achiamé; RioArte, 1983.NASCIMENTO, A. do. Dramas para negros e prólogo para bran-cos: antologia de teatro negro-brasileiro. Rio de Janeiro: Edição do Teatro Experimental do Negro, 1961.NASCIMENTO, A. do. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados, São Paulo, v.18, n.50, p.209-224, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n50/a19v1850.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.NETO, L. Uma história do Samba. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.Ao longo da história da civilização ocidental, houve uma predomi-nância da propagação da cultura europeia, sobretudo relacionada a interesses de dominação econômica e social, que resultaram, entre outros aspectos, na objetificação e no apagamento de povos, territórios, saberes e costumes. Assim, a música vinda da Europa, associada à disseminação do Cristianismo, foi conduzida aos ter-ritórios invadidos pelos colonizadores, determinando um padrão estético para uma prática musical que se estabeleceu até a atuali-dade. Nesse contexto, povos africanos trazidos para o Brasil como escravizados foram obrigados a praticar, entre outras coisas, essa música à qual me referirei como música de concerto1. No Brasil, falar sobre a presença do negro na música de con-certo é um assunto recente entre autores, dos quais trago Sampaio (2008, 2016), Rosa e Rêgo (2017) e Rosa e Adour (2019), que vêm se debruçando sobre o assunto. Partindo dessa bibliografia existente, percebe-se que os racismos inerentes ao período colonial resulta-ram no apagamento e invisibilização de trajetórias, de forma que ainda hoje se compreende a música de concerto como ferramenta 1 Também identificada como música clássica ou música erudita, direcionada a uma lin-guagem musical que tradicionalmente remete à música ocidental, podendo abarcar diversos períodos da história da música, como o Renascimento, o Barroco, o Clássico e Romântico, além de diversos gêneros como a ópera ou música sinfônica, por exemplo. O negro no canto lírico brasileiroIrma Ferreira58EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAde ascensão social para pessoas negras, mas raramente se fala que, no país, tal segmento artístico foi forjado com a participação direta do negro, tampouco se conhecem os grandes artistas negros que se dedicaram a essa linguagem musical.Assim, Sampaio (2008, p.18-20) destaca que “a participação do negro na música brasileira foi constante” trazendo o exemplo de Minas Gerais, que assim como outros estados do país nessa épo-ca, “desenvolveu uma atividade musical erudita com sólida base e influência europeia, na qual a presença negra foi primordial”. O autor traz ainda que a figura do negro esteve sempre a servi-ço do fazer musical “mesmo não podendo usufruir do prestígio” (Sampaio, 2008, p.19) de ocupar esse lugar de protagonismo, por causa dos padrões estabelecidos pela branquitude em uma socie-dade eurocêntrica e escravagista.Já a Bahia, como trata Duprat (1965), foi o mais importante centro da música de concerto nos primeiros séculos coloniais, ten-do produzido a peça mais antiga dessa linguagem conhecida na história da música no Brasil a obra Recitativo e Ária, de 2 de julho de 1759, com texto em português, compostapara voz, violinos e baixo contínuo. Esse autor assinala que a obra “representa um real testemunho do nível e da sensibilidade artística atingida naquela data na região” (Duprat, 1965, p.106), trazendo ainda que, apesar de antes ser lida como peça de autor desconhecido, após análise, foi atribuída ao padre Caetano de Mello de Jesus2.2 A produção atribuída ao Pe. Caetano de Mello de Jesus é bastante vasta. Isso se dá devido ao cargo que ocupava na Sé de Salvador, onde, por mais de vinte e cinco anos, foi mestre de capela da Catedral da Bahia, sendo o principal representante da música erudita baiana em seu tempo. Em 1759, o Pe. Caetano de Mello de Jesus escreveu um dos mais importantes tra-tados de música do Brasil colonial, a Escola de Canto e Órgão: música praticada em forma de diálogo entre discípulo e mestre, tratado em quatro volumes, dos quais apenas dois chegaram até os dias atuais. Infelizmente muitas das partituras dessas obras não chegaram aos dias de hoje e outras, assim como o Recitativo e Ária, foram atribuídas a ele após análise, pois não havia indicação de autor.59IRMA FERREIRATendo em vista a grande quantidade de igrejas e irmandades existentes na Bahia colonial e que cada uma delas teria o seu mestre de capela, sabe-se que, além do padre Caetano de Mello de Jesus, alguns outros mestres de capela, organeiros e organistas titulares das ordens religiosas de Salvador tiveram numerosas produções no século XVIII. Mazza (1945) cita alguns desses padres músicos/compositores que se destacaram para além colônia: “Eusébio de Matos, José de Santa Maria, Antônio Matias, José Costinha, José Francisco, José Manoel e Luís de Jesus”, indicando uma produção de música de concerto considerável na região naquele período.Tratando sobre a presença do negro nesse contexto e sobre sua formação na música erudita, Risério (2004, p.240) traz que “havia, portanto, em nosso meio – e pelo menos desde os primei-ros anos do século XVII – a curiosa figura do negro escravizado com formação musical europeia erudita”, afirmando que já naque-la época “muitos negros absorveram exemplos do repertório dos cantares extraeruditos do mundo europeu”.Assim, desde os primeiros tempos do Brasil colônia, fosse diante da necessidade da mão de obra, da riqueza timbrística da voz, da musicalidade e/ou habilidades técnicas, a presença negra também se mostra fundamental no desenvolvimento da lingua-gem que é o foco deste capítulo, o canto lírico. Entretanto, a so-ciedade escravocrata da época reduzia a participação do negro na construção social à mão de obra objetificada e desqualificada, direcionada a trabalhos braçais ou domésticos, o que ocasionou a deslegitimação de suas capacidades intelectuais e artísticas, bem como no apagamento dessas trajetórias ao longo da história da música de concerto no Brasil. Então, o negro que exercia a função de músico de concerto esta-va suscetível às mais diversas formas de racismo para se aproximar 60EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAde um padrão estético eurocêntrico estabelecido e adotado por uma parcela da sociedade que se deleitava com musicalidade e técnica desses cantores, mas não admitia a presença negra naqueles espa-ços. Era preciso, por exemplo, que camuflassem seus traços fenotí-picos, o que não garantia aceitação e reconhecimento por parte da sociedade, que raramente divulgava os nomes desses artistas nos programas de concerto3, e, algumas vezes sob condições, os permi-tia acessar o palco, e, quando não, se apresentavam sem se mostrar ao público, da coxia4.No livro Viagem em Portugal (1798-1802), Ruders (2002, p.93), na carta nºVIII5, ao falar sobre a soprano6 negra de Minas Gerais, Jo-aquina Maria da Conceição da Lapa7, descreve-a da seguinte maneira:Natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedeia--se com cosméticos. Fora isso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático.Nas palavras do padre, a descrição racial, colocada como um “inconveniente”, vem antes mesmo de qualquer comentário sobre sua prática musical, inclusive já apontando uma “solução” para a sua aparência com uso de cosméticos. 3 Documentos tradicionalmente disponibilizados ao público em apresentações de concertos musicais, em forma de livretos, folhetos e mais recentemente em formato digital, por leitura de QR CODE. Esses itens reúnem informações sobre as peças, compositores e intérpretes.4 Espaço existente nos teatros, não visível ao público, localizado em torno do palco.5 Carl Ruders foi um padre sueco de Estocolmo do século XVIII, enviado a Portugal para ocupar a Capelania da Legação Sueca. O livro que traz a citação em questão é Viagem em Portugal, 1798-1802, um compilado de cartas escritas pelo padre em sua estadia no país, publicado pela Biblioteca Nacional de Portugal em 2002. A carta em questão é datada de 29 de março de 1800 e endereçada para seu amigo “W…” que, segundo o autor, no momento da sua partida da Suécia, lhe pediu que o mantivesse informado sobre suas impressões em relação aos teatros de Lisboa. 6 Classificação vocal destinada a vozes femininas agudas.7 Recém-contratada para o Teatro Italiano, com autorização do príncipe regente (futuro Dom João VI).61IRMA FERREIRAEsses atravessamentos raciais, observados desde comentários como esse até situações de exclusão e outras violências, vêm ao longo do tempo se reproduzindo, inviabilizando e invisibilizando trajetórias de cantores líricos negros no Brasil, onde a eles cabe apenas estar a serviço do fazer musical mecanicamente. Situações como essa mostram que naquela época o negro poderia até atuar e ter certa visibilidade como cantor lírico, mas não estaria livre dos racismos sofridos por causa dos seus traços fenotípicos ou do apagamento de suas trajetórias ao longo da história.Ainda hoje a formação e atuação de cantores líricos negros, dadas as devidas proporções por conta dos direitos assegurados pe-las leis8, são atravessadas por questões que perpassam os aspectos técnicos e artísticos pertinentes a essa prática, gerando dificulda-des que refletem a estrutura da sociedade e interferem no desen-volvimento, ocupação e representatividade desses cantores. Nes-se sentido, o tempo passou e a música de concerto de certa forma continuou sendo vista como uma opção de ascensão racial, social e econômica, mas quem foram os cantores líricos negros que ocu-param esses espaços de protagonismo? E quem os ocupa agora? Para além dos atravessamentos raciais que permeiam as fases de desenvolvimento desses cantores, a ideia deste capítulo é falar sobre a presença negra no canto lírico brasileiro de maneira que se possa conhecer mais sobre os artistas que fazem parte dessa histó-ria, vista a importância da representatividade para o surgimento de novas gerações, como diz Berth (2019, p.115): “as pessoas negras pre-cisam se ver de forma positiva [...], pois essas imagens vão ressignifi-car o imaginário que será abalado e simultaneamente reconstruído”. Apesar de ser uma realidade recente, o reconhecimento de in-térpretes negros do repertório do canto lírico em palcos nacionais 8 A exemplo da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial.62EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAe internacionais está cada vez mais frequente, mas ainda assim há uma necessidade de dar nomes a esses cantores. Com esse intuito, passarei a discorrer sobre alguns cantores líricos negros do passado, fazendo um pequeno relato sobre suas trajetórias. O que sabemos sobre esses profissionais se deve a pesquisas isoladas de poucos estu-diosos, nos fazendo supor que outros tantos tenham tido suas trajetó-rias apagadas ao longo da história. Assim, se faz necessário também listar os artistas atuais. Iniciemos então com uma das mais notáveis cantoras líricas negras9 do Brasil do período colonial: Lapinha.Figura 1 – Joaquina Maria da Conceição LapaFonte:Negras líricas: duas intérpretes negras brasileiras na música de concerto (2008).9 Para as cantoras líricas que atuaram no passado optei por inserir no texto um discurso um pouco mais alongado e ilustrado com suas imagens a fim de possibilitar ao leitor conhecer es-sas trajetórias e visualizar como eram essas personalidades, enquanto que ao falar dos artistas atuais, por questão das dimensões deste capítulo e pelo fato de serem trajetórias que estão em curso, me utilizarei além de uma breve explanação sobre seus percursos, da tecnologia das redes sociais, disponibilizando o perfil destes cantores líricos no qual o leitor poderá ter um acesso ampliado às suas trajetórias.63IRMA FERREIRAJoaquina Maria da Conceição Lapa (XVIII), uma soprano ne-gra nascida em Minas Gerais no século XVIII, começou a atuar em óperas no Rio de Janeiro na década de 1780, na Casa de Ópera de Manuel Luís, também conhecida como Ópera Nova, Nova Casa de Ópera ou Teatro Manuel Luís. Situada na atual praça Quinze de Novembro, a Casa é considerada a mais imponente casa de ópera do seu tempo. Sobre o espaço, Sampaio (2008, p.30) traz que lá o vice-rei D. Fernando José de Portugal e Castro implantou uma companhia lírica, “a primeira do país [...] composta por mulatos em quase toda sua totalidade”.Em sua história, Lapinha subverte alguns padrões estabeleci-dos à época no que diz respeito a questões raciais e de gênero. Ela foi a primeira mulher brasileira a ter autorização com anuência soberana para se apresentar em palco, mesmo tendo em vista que essa era uma função considerada masculina. “A restrição aplica-da ao sexo feminino vigorava havia algum tempo e se agravou na década de 1780, data da aprovação por D. Maria I” (Sampaio, 2008, p.34). Essa lei perdurou até 1800.Lapinha firmou carreira no Brasil e na Europa, encenando várias peças do italiano Giovanni Paisiello (1740-1816), Domenico Cimarosa (1749-1801), os compositores mais conhecidos do gênero na época, Fortunato Mazziotti (1782-1855), do português Marcos Portugal (1762-1830) e do compositor brasileiro José Maurício Nu-nes Garcia (1767-1830), que lhe dedicou papéis líricos em “Ulis-seia” e em “O Triunfo da América”.Lapinha foi a primeira mulher a cantar no Teatro de São Car-los na Lisboa de 1795, sendo a primeira brasileira a ser reconhecida fora do país. Entretanto, apenas nos últimos quinze anos passou a ter um pouco de visibilidade na academia e entre os profissionais de canto lírico, virando tema para alguns escritores que trazem 64EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAum pouco de seu percurso na tentativa de remediar a invisibili-zação disposta à sua trajetória. Em 2022, seu nome foi utilizado como título do primeiro concurso de canto lírico voltado para pre-tos, pardos e indígenas, o I Concurso de Canto Joaquina Lapinha, realizado no Conservatório de Tatuí-SP, que recebeu mais de 100 inscritos de todo território nacional.Assim como Lapinha no século XVIII, uma outra mulher ne-gra fez história no canto lírico brasileiro no final do século XIX e início do século XX, Camila Maria da Conceição:Figura 2 – Camila Maria da ConceiçãoFonte: Negras líricas: duas intérpretes negras brasileiras na música de concerto (2008).65IRMA FERREIRACamila Maria da Conceição (1873-1936) nasceu no Rio de Ja-neiro, onde em 1891 iniciou o curso de canto no Instituto Nacio-nal de Música, sendo citada nos programas de concerto de alunos do conservatório em 1892. A soprano foi destaque da instituição em sua época, sendo a única estudante a obter nota máxima nes-sa formação. Assim como Lapinha, esteve à frente do seu tempo, enfrentou na pele as consequências de ser uma mulher negra no exercício do canto lírico e ainda assim desenvolveu uma carreira sólida nessa função.Em seu repertório, estavam compositores como Saint-Saëns, Massenet, Delibes, Meyerbeer, Rossini, Carlos Gomes e Nepomu-ceno, que foi um grande admirador da arte da cantora, designan-do-a para estreia de obras como a peça As Uiaras em 1896. Em pouco tempo ocupou os palcos dos teatros do Rio e da corte portu-guesa, protagonizando óperas até hoje reconhecidas pelo grande público, como La Gioconda, de Amilcare Ponchielli, Aída e Baile de máscaras, de Giuseppe Verdi, O Guarani, de Carlos Gomes, entre outras. Sua carreira como cantora foi extensa e produtiva até o final do século XIX, quando passou a se dedicar à carreira de pro-fessora de canto.Em 1904, Camila se tornou a primeira professora negra de canto do Instituto Nacional de Música e dedicou-se intensamente ao exercício do magistério até 1936, quando foi destituída da fun-ção por causas duvidosas, das quais se atribuiu a questões raciais. Com efeito, a segunda metade dos anos 30 foi o período de ascen-são do fascismo, incluindo o Brasil e por consequência do racismo institucional.66EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAChegamos a 1891, com a cantora Zaíra de Oliveira:Figura 3 – Zaíra de OliveiraFonte: Acervo Marcelo Bonavides.Nascida no Rio de Janeiro, Zaíra de Oliveira (1891-1952) foi uma soprano de projeção nacional. Iniciou seus estudos no can-to lírico na década de 1910 no Instituto Nacional de Música sob a tutela da professora Ângela Vargas Barbosa Vianna, realizando sua primeira apresentação pública aos 20 anos no Theatro Muni-cipal do Rio de Janeiro, ao interpretar trechos de óperas de Car-los Gomes no 52ºConcerto Sinfônico, em 22 de maio de 1920, sob regência do maestro Francisco Braga. Em seu repertório estavam Puccini, Massenet, Verdi, Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, Villa-Lobos, entre outros compositores da música de concerto. Fez parte do Coral Brasileiro cantando ao lado da soprano Bidu Sayão.67IRMA FERREIRAAlém do repertório de soprano lírica, Zaíra atuava também na música popular brasileira, sendo considerada um importante nome na música de sua geração, tendo gravado discos com as mais importantes gravadoras da sua época, como a Odeon Record, Vic-tor e a Casa Edison. Neste segmento cantou ao lado de nomes como Alda Verona e Maria Branca Ortega, além de Ernesto Nazareth.Assim como Camila Maria da Conceição, Zaíra se formou com louvor no Instituto Nacional de Música e por isso pôde participar de um concurso de canto junto a outras três cantoras para con-correr a uma viagem a Paris para prosseguir com seus estudos de canto lírico. Apesar de ter ganhado a medalha de ouro, Zaíra foi impedida de receber o prêmio, ao que tudo indica por questões raciais. Ruy Castro ressalta que os professores que “a julgaram e premiaram não foram os mesmos que a vetaram”. Os primeiros sabiam de seu imenso talento, os segundos também, mas ainda assim decidiram boicotá-la.Esta também é a opinião de Bonavides (2023), que afirma que a cantora ganhou e não levou a bolsa porque era negra, colocando que na mentalidade da época, uma negra representando o Brasil na Europa, ainda mais no canto lírico, não seria aceitável. A cara do país na França, na Inglaterra e na Itália “tinha” de ser bran-ca. Jota Efegê ([199-] apud Bonavides, 2023) sublinha que Zaíra de Oliveira era uma pessoa “talentosa e com uma voz magnífica”, cantando óperas com distinção, mas não se esquecia da música popular, gravando marchas e sambas.Dando mais um salto no tempo, chego ao Rio de Janeiro de 1936, onde nasceu a mezzo soprano10 Maria D’Apparecida.10 Classificação vocal destinada às vozes femininas de tessitura vocal intermediárias, sendo as vozes graves femininas classificadas como contralto.68EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAFigura 4 – Maria D’ApparecidaFonte: Rascunho: o jornal da literatura do Brasil (2020).11Maria de Aparecida Marques nasceu no Rio de Janeiro em 17 de janeiro de 1936 e faleceu em Paris em 4 de julho de 2017. Iniciou sua vida profissional em 1948 como professora primária e locuto-ra radiofônica, participou como atriz no Teatro Experimental do Negro e estudou no Conservatório Brasileiro de Música. Depois de iniciar seus estudos e uma trajetória no canto líricono Brasil, em 1960, a cantora se mudou para Paris, onde aprimorou sua forma-ção e seguiu lá com sua carreira. Maria D’Apparecida tornou-se uma das principais intérpretes da Ópera de Paris, onde foi reconhecida como a melhor Carmen12 da sua época. A mezzo soprano ficou internacionalmente conheci-da como “a Maria Callas afro-brasileira”, não sendo devidamente 11 Ver em: https://rascunho.com.br/noticias/biografia-resgata-trajetoria-da-cantora-maria--dapparecida/.12 Personagem principal da ópera Carmen de Bizet, escrito para a voz mezzo soprano.69IRMA FERREIRAreconhecida no Brasil pela sua importância, obteve na França ho-menagens e títulos. Na música popular brasileira, Maria D’Apparecida participou de importantes gravações, principalmente com Baden Powell. Gra-vou em 1955 um disco com canções do compositor Waldemar Hen-rique, assim como em 1967 e 1968, além disso gravou parte da obra de Heckel Tavares, Villa-Lobos e Jaime Ovalle. Entre as décadas de 1960 e 1990, foi atuante na cena lírica francesa, incursionando também pela música popular e pelo jazz. Maria D’Apparecida Marques faleceu em 2017 em Paris e seu corpo ficou longos dias à espera de parentes até que foi decidido pela cremação e transferência das cinzas para o Brasil. A mezzo soprano, assim como outras e outros cantores líricos negros brasi-leiros, teve sua trajetória renegada e esquecida no país. Logo após sua morte, em 2017, a exposição Concrete Mirror mostrou infor-mações e trabalhos sobre Maria D’Apparecida no contexto de pes-quisa, o que possibilitou que sua história fosse tratada e revelada ao público brasileiro. Com mais um salto na história chego a cantores líricos negros da atualidade. Daqui para frente me utilizarei da tecnologia atual das redes sociais para a identificação e uma interação direta entre vocês leitores e esses cantores, o que possibilitará acesso a ima-gens, agendas e a essas histórias que estão em curso. Como fontes, na inexistência de uma bibliografia, utilizo de sites pessoais dos artistas, depoimentos diretos, montagens conjuntas, programas de concertos e portfólios. Assim, inicio essa nova fase da narrativa com Edna D’Oliveira.Nascida em Belo Horizonte, Edna D’Oliveira13 está entre as mais importantes sopranos do Brasil na atualidade. Professora de 13 Site: www.ednadoliveira.com.br; Instagram: @doliveiraedna.70EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAcanto na Escola Municipal da Fundação do Theatro Municipal de São Paulo e da Faculdade Cantareira, além da formação acadêmi-ca de cantora lírica, recentemente se formou em Fonoaudiologia, utilizando também esse conhecimento nas suas aulas de canto e performance. A soprano cursou Especialização em Canto com Alex Ingram e Lionel Friend na English National Opera e Royal Academy, em Londres. Participou de vários festivais internacio-nais pela Europa, EUA, Argentina, Chile e Brasil. Como solista, tem em seu repertório alguns dos mais tradi-cionais papéis da literatura para soprano, passando pelas óperas Rigoletto e Falstaff, de Giuseppe Verdi; A flauta mágica e O empre-sário, de Wolfgang Amadeus Mozart; L’elisir d’amore, de Gaetano Donizetti; Il cappello di paglia di Firenze, de Nino Rota; Die Fleder-maus, de Richard Strauss; Porgy and Bess, de George Gershwin; Andrea Chenier, de Umberto Giordano; Carmen, de Georges Bizet; Il Guarany, de Carlos Gomes; A viúva alegre, de Franz Lehár, e inú-meros outros títulos. Além de todo esse repertório, a cantora vem se dedicando à realização de vários concertos com repertório vol-tado à música negra e afro-brasileira.Na sequência, trago Edineia Oliveira14. A mezzo soprano na-tural de Minas Gerais se graduou em canto pela Universidade Es-tadual Paulista. Durante sua formação estudou com a soprano Neyde Thomas, o barítono Carmo Barbosa, com Fernando Car-valhaes, além de fazer aperfeiçoamento com a professora Claudia Friedlander nos EUA. Com uma carreira de alcance internacio-nal, possui um vasto repertório lírico e sinfônico realizado nas principais salas de teatro do país, dentre os quais a Nona Sinfonia, de Beethoven, Eiji Oue, em Jeremiah; Lieder Eines Fahenden Ge-sellen; Il Trittico, de Puccini; Oitava Sinfonia, de Mahler; Segunda 14 Site: edineiaoliveira.com.br/; Instagram: @edineia.oliveira.mezzo.71IRMA FERREIRASinfonia, de Mahler; Sea Pictures, de Edward Elgar; Requiem, de Verdi; Stabat Mater, de Pergolesi. Entre as óperas, estão Aída; Don Carlo; Falstaff; Il Trovatore; Macbeth; Rigoletto; Un Ballo in Maschera, de G. Verdi; La Gioconda, de Amilcare Ponchielli; Gianni Schicchi; Il Tabarro; Sour Angéli-ca e Madame Butterfly, de Giacomo Puccini; Dido and Aeneas, de Henry Purcell. Sua carreira e reconhecimento internacional al-cançam países como Argentina, México, EUA, Alemanha, França, Itália, entre outros. A mezzo soprano recebeu inúmeros prêmios por suas realizações, entre eles o Prêmio Carlos Gomes. Além disso, gravou, junto ao grupo Brasilessência, três CDs de Música Colonial Brasileira; é criadora e idealizadora do Curso de Canto Lírico Respire e Cante, cofundadora e professora do Curso Voz e Corpo; e cofundadora e professora do projeto Ópera 45. Como primeiro cantor lírico negro dessa narrativa, trago ago-ra o tenor15 Marcos Thadeu Miranda Gomes16, que, assim como as irmãs Edna D’Oliveira e Edineia de Oliveira, está entre os cantores líricos mais importantes da atualidade no Brasil. Com uma longa carreira voltada para a música de concerto e para o ensino musi-cal, em especial do canto lírico, vem em sua trajetória contribuin-do para a formação de dezenas de cantores líricos que hoje estão atuando profissionalmente no Brasil e no exterior, seja diretamen-te como professor desses cantores ou indiretamente como inspi-ração. Em sua formação, estudou com Sérgio Magnani, Berenice Menegale, Eladio Pérez-González, Esther Scliar e Carlos Alberto Pinto Fonseca. Trabalhou com maestros como Michel Corboz, Eu-gene Kohn, Eleazar de Carvalho, Robert Shaw e David Machado.15 Classificação vocal destinada às vozes masculinas agudas.16 Facebook: https://www.facebook.com/marcosthadeu.gomes.72EDUCAÇÃO ANTIRRACISTADentre as obras relevantes ao canto lírico que protagonizou, estão as óperas Carmen, de Bizet; Il Trovatore e Falstaff, de Giu-seppe Verdi; Der Rosenkavalier, de Richard Strauss; Lídia de Oxum (versão de 1993), de Lindembergue Cardoso; Ópera Tiradentes, de Manoel Joaquim de Macedo, além do repertório sinfônico como Great Mass in C minor K.427; Cantata 147, de Johann Sebastian Bach; Requiem, de Wolfgang Amadeus Mozart; Missa em Lá bemol maior, de Franz Schubert; O Messias, de Georg Friedrich Händel; Missa afro-brasileira, de Carlos Alberto Pinto Fonseca; Missa, de Igor Stravinsky, entre outras.Na sequência, trago Sebastião Soares Teixeira Nascimento17. Nascido em Caeté (MG), esse barítono18 iniciou seus estudos no canto lírico em Belo Horizonte com o professor Geraldo Chagaso e o tenor Marcos Thadeu, dando seguimento aos seus estudos em São Paulo com os cantores Carmo Barbosa, Helly-Anne Caram, Luiz Tenaglia e Isabel Maresca. Atualmente, com mais de 30 anos de carreira, o cantor vem colecionando prêmios, dentre os quais estão o Prêmio Carlos Gomes, o Prêmio de Destaque Vocal Mas-culino e Medalha de Honra ao Mérito da Fundação Clóvis Salgado, além de duas premiações pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) na categoria de melhor cantor erudito. No repertório realizado por ele, estão as óperas Carmen, de Georges Bizet; O barbeiro de Sevilha, de Gioachino Rossini; Pa-gliacci, de Ruggero Leoncavallo; L’elisir d’amore, de Gaetano Doni-zetti; A viúva alegre, de Franz Lehár; ópera Chagas, de Sílvio Bar-bato; ópera Pedro Malazarte, de Camargo Guarnieri; La Bohème, de Giacomo Puccini; Madame Butterfly, La Forza del Destino e Il Trovatore, de Giuseppe Verdi; Don Pasquale, Cavalleria Rusticana, 17 Instagram: @sebastiaosoaresteixeira.18 Classificação vocal destinada às vozesmasculinas de tessitura vocal intermediária.73IRMA FERREIRAde Pietro Mascagni; Pelléas et Mélisande, de Claude Debussy; Les Pêcheurs de Perles, de Georges Bizet, entre muitos outros títulos da música sinfônica. Luiz-Ottavio Faria19: natural no Rio de Janeiro, esse barítono formado pela The Juilliard School of Music, de Nova Iorque, tem uma extensa carreira nacional e internacional. Em sua formação, além da renomada universidade estadunidense e do American Institute of Music Studies (AIMS) na Áustria, estudou na Escola de Música Villa-Lobos, no Conservatório Brasileiro de Música e na Universidade do Rio de Janeiro. Sua estreia no palco de ópera se deu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro com a ópera Un Ballo in Maschera, de Verdi, repetindo a temporada no Theatro Munici-pal de São Paulo. Também realizou as óperas Don Giovanni e A flauta mágica, de Mozart; Aída, Macbeth, Nabucco e Rigoletto, de Verdi; La Bohè-me e a ópera Turandot, de Puccini, e Norma, de Vincenzo Bellini. Seu repertório sinfônico inclui o magistral Requiem, de Verdi, a Nona Sinfonia, de Beethoven, o Requiem, de Mozart, The Kingdom, de Edward Elgar, Magnificat, de Bach, e Stabat Mater, de Rossini. Dentre os prêmios nacionais e internacionais conquistados, estão o XXI Concurso Carlos Gomes; o troféu Baixo Guilherme Damia-no; a Bolsa de Estudos para a Juilliard School of Music; o Die Meis-tersingers – AIMS, na Áustria; o Opera Index, para a The Great Buffalo Opera; o YWCA; o The New Jersey State Opera; o Lola Hayes Vocal Competition e o The William Mathews Sullivan Fou-ndation Award, entre outros.Voltando para as vozes femininas, trago Marly Montoni20. A so-prano natural de São Paulo é bacharela em Canto pela Universidade 19 Site: https://luizottaviofaria.com/. Facebook: https://www.facebook.com/luiz.ottavio.75.20 Instagram: @sopranomarly.74EDUCAÇÃO ANTIRRACISTACruzeiro do Sul-SP e pós-graduada em Canto e Expressão pelo Ins-tituto Alpha-FACEC. Durante sua formação, Marly aperfeiçoou-se com o tenor Antonio Lotti e fez coaching de repertório com o pia-nista Rafael Andrade. Sua estreia se deu no Teatro Municipal de São Paulo em 2017 na ópera Fidelio, de Beethoven. Dando seguimento à sua carreira, protagonizou as óperas Na-bucco, de Verdi; Porgy and Bess, de Gershwin; The Rake’s Progress, de Stravinsky; Turandot; Madame Butterfly, de Puccini; Condor, de Carlos Gomes; La Wally, de Alfredo Catalani; Roberto Devereux, de Donizetti; Der Zwerg, de Alexander von Zemlinsky. A soprano participou da primeira montagem da ópera Aída, de Verdi, em que o elenco principal foi majoritariamente negro. Dando início a sua carreira internacional, nos últimos dois anos, a cantora tem reali-zado uma série de concertos sinfônicos pela Europa.Na sequência, o tenor lírico Carlos Eduardo Santos21, natural de Salvador-BA, iniciou sua formação e prática vocal cantando em corais em 2006 e desde então vem atuando como coralista e solis-ta, preparador vocal e professor de canto. Realizou masterclasses de aperfeiçoamento com António Salgado, Neyde Thomaz, Marí-lia Vargas, Lawrence Zazzo, Ângela Barra e atualmente é orien-tado pelo professor Paulo Mandarino. Como membro do Núcleo de Ópera da Bahia, realizou turnês por vários países da Europa. Dentre as obras apresentadas, estão as óperas Treemonisha, de Scott Joplin; Lídia de Oxum, de Cardoso, Gianni Schicchi, de Puc-cini; Ópera dos terreiros; Ópera Jelin, de Aldo Brizzi; Amor azul, de Brizzi e Gilberto Gil; A flauta mágica, de Mozart; Die Fledermaus, de Strauss. Recentemente, estreou no Teatro Municipal de São Paulo com a inovadora montagem da ópera O Guarani, de Carlos Gomes. 21 Instagram: @ceduardosantostenor.75IRMA FERREIRAO cantor possui também um extenso repertório sinfônico. Seus trabalhos gravados e disponibilizados nos streamings de música são o seu EP Afrolirismo, o CD Oratório de Santo Antônio, reali-zado pelo Núcleo de Ópera da Bahia e o CD do Madrigal da Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA). Premiado pelo Concurso de Canto Lírico Maria Callas, participou do 11ºEncontro de Tenores do Brasil, no Theatro Amazonas. Para além de todas essas apre-sentações, se dedica a recitais para formação de plateia.Por fim, existem cantores líricos negros com contribuição re-conhecida no país e outros com carreiras promissoras em desen-volvimento cujas trajetórias não poderão ser descritas aqui, mas aponto alguns nomes que podem ser localizados facilmente atra-vés de suas redes sociais22, dentre os quais: Inaicyra Falcão (BA), o baixo Sávio Sperandio (MG), o baixo23 Josehr Santos (BA), o barítono Michel de Souza (SP), a soprano Azuumy (BA), o tenor Sandro Machado (BA), o barítono Carlos Morais (BA), a mezzo so-prano Vanda Otero (BA), a soprano Mirela Freitas (SE), a soprano Eneida Lima (BA), a soprano Eliseth Gomes (MG), o tenor Clóvis Português (SP), a soprano Nabila Dandara (MG), o tenor Estevão Batista (SP), o barítono Isaque Oliveira (SP), a soprano Rebeca Oliveira (SP), a soprano Chiara Santoro (RJ), o tenor Weverton Silva (SP), o tenor Roziel Benvindo (SE), a contralto Silvia Neves (MG), a soprano Tati Reis (SP), o barítono David Marcondes (SP), entre muitos outros que espero que o leitor tenha acesso em tra-balhos futuros.22 Site ou Instagram dos cantores em ordem disposta no parágrafo: www.inaicyrafalcao. com, @savio_sperandio; @josehrsantos7baixo; @michelmusico; @azuumyasoprano_real; @sdmachado; @carlosmoraesopera; @vanda_mezzo; @freitasmirela; @eneida.lima.50, @elisethgomesolive; @clovisportugues; @nabiladandara; @estevaobatista_; @isaque.musico; @beccaoliveira; @chiara_santoro; @wevs_silva; @rozielbenvindo; @silvianeves; @tatireis.vox; @davidmarcondesmarcondes.23 Classificação vocal destinada as vozes masculinas graves.76EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAAssim, ao trazer um vislumbre do que tem sido a participa-ção de pessoas negras no canto lírico brasileiro, falando sobre os atravessamentos raciais e sobre como suas trajetórias foram in-visibilizadas em face do racismo e da branquitude, busquei, para além das situações de desequilíbrio e injustiça, abrir espaço para celebrar biografias de profissionais que estão em plena atividade e dando continuidade a uma história iniciada por nossos mais ve-lhos há séculos. 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Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.Corpo e Dançana infância: práticas afrorreferenciais no ensinoLissandra Patrícia Conceição dos SantosA história da grande Mãe África para o Brasil precisa ser vista de dentro para fora, pois a sua cultura e seu patrimônio social devem ser apresentados aos brasileiros pelos conhecimentos, religiões, línguas, valores, crenças e conceitos. São informações que nos ajudarão a reconhecer de onde vêm nossas próprias influências culturais e simbólicas que formam cada indivíduo em nossa so-ciedade. Faz-se necessário tornar visível a história desse legado deixado por nossos ancestrais negros. Compreender essa herança oriunda do continente africano nos ajudará a entender parte da problemática que hoje vivemos e com isso poderemos ter a percepção sobre como a violência res-vala com maior incidência na população negra, como a desigual-dade é maior na periferia e, principalmente, qual é a cor dessa periferia. Cientes dessa questão histórica, podemos apontar que o alunado sofre de racismo estrutural, que compreende também o racismo institucional.Segundo Silvio Almeida (2019), quando as relações políticas, econômicas, jurídicas e por vezes familiares normatizam o racismo, isso demonstra o quão estrutural ele está na nossa sociedade e, 80EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAaliado à estrutura social que normalizou o comportamento ra-cista, têm-se instituições que atuam todos os dias de modo que confere, mesmo que indiretamente, desvantagens e privilégios aos sujeitos baseados em sua raça. Percebendo a necessidade do reconhecimento do corpo negro na infância, sobretudo de crianças que crescem sem saber sobre sua história e seus legados ancestrais, se autonegando enquanto crianças negras, para compreenderem como se deu essa ruptura do processo do não reconhecimento de si, abre-se espaço para o lugar de fala, que, segundo Djamila Ribeiro (2019), é necessário para que possamos descobrir onde nossa identidade foi forjada.Quando me refiro a abrir espaço para os estudantes falarem e se colocarem a partir do seu ponto de vista, pretendo relevar a oportunidade de expor as observações que eles fazem diariamente sobre como é ser uma pessoa negra na sociedade. Esse espaço de fala nesse contexto precisa ser direcionado a quem vive ou quem viveu o racismo e oportunizar a essas pessoas que falem de suas vivências e realidades. Para compreender o motivo da negação dessas crianças sobre sua afro-brasilidade, percebe-se por meio das falas das mesmas o motivo de tanta vergonha de se reconhecerem enquanto crian-ças negras. Isso está ligado a uma série de fatores, como ausência de diálogo familiar sobre reconhecimento da ancestralidade e de assuntos que abordam as questões étnico-raciais, além da defici-ência do ensino sobre África e cultura afro-brasileira nos livros di-dáticos, mesmo após a implementação da Lei n°10.639/2003, que obriga escolas públicas e particulares a apresentar e desenvolver esses temas em sala de aula.A imagem da pessoa negra em alguns livros didáticos é, em geral, apresentada em lugar subalternizado, contribuindo ainda 81LISSANDRA PATRÍCIA CONCEIÇÃO DOS SANTOSmais com o racismo na sociedade em que vivemos. Isso demons-tra uma enorme ausência de referências positivas da negritude nesses livros, o que reforça a negação desses estudantes para o autoconhecimento. Reconhecendo os valores civilizatórios afri-canos e afrodiaspóricos que nos compõem, se faz necessário o despertar desses indivíduos para sua africanidade, referindo-me como africanos em diáspora e possibilitar, pela Dança, a forma-ção de sujeitos “afinados” com sua ancestralidade e que se sintam pertencentes a esse país reconhecendo a sua verdadeira história; fortalecendo, assim, a sua autoestima.A partir das narrativas africanas e afrodiaspóricas, conside-rando que somos pessoas negras em diáspora e que se faz neces-sário criar condições a partir do orgulho e resistência tomando como referência nossa própria história, entendo a pessoa estudan-te como pretagonista desse despertar por meio da prática da Dan-ça. Pensando que nossos corpos não são vazios e estão aqui pul-sando memórias, proponho estimular esse despertar necessário; fortalecendo, a partir dessa prática, a construção da identidade e favorecendo sua autorreflexão para o reconhecimento da magni-tude de serem crianças negras.Para um ensino de Dança num ponto de vista afrorreferen-cial, que atende às demandas psicológicas e emocionais de uma comunidade de pessoas negras em diáspora, se faz necessário criar condições e métodos em que as histórias ancestrais sejam conta-das, dentre outros aspectos, a partir da perspectiva do orgulho e da resistência. É importante tomar como referência a nossa própria história colocando estudantes negros e negras como pretagonistas do seu legado ancestral, oportunizando práticas de Danças e a pos-sibilidade de criação e participação ativa nesse processo. 82EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAHá uma força vital dentro da concepção da celebração do corpo, que reverencia a espiritualidade. Simbolicamente, o corpo negro, como corpo antropofágico, incorpora a diversidade cultu-ral do outro e, após mastigá-la, retorna transformado. Essa é uma facilidade que os povos negros possuem. Esse ato decolonial é uma ação que nós, professores, necessitamos estimular pelas práticas afrorrenciais desde a infância. A reconstrução da autoestima e da identidade das crianças negras precisam ser curadas por meio da potência que somos a partir da reconexão com a nossa história e os nossos saberes, abrindo espaços para experimentações e redes-cobertas que se dão através desse corpo (Petit, 2015).Luciane Ramos da Silva (2008) considera a Dança como uma prática social, cultural e política, que serve para trazer à tona o melhor de diversos sujeitos que estão reprimidos, segregados e desassistidos pelo poder público. Para Silva (2007), a Dança é uma linguagem que nos ajuda a buscar políticas identitárias que auxiliem o reconhecimento dos sujeitos, pois a considera um dos elementos-chave para a existência dos indivíduos pelo reconheci-mento de sua ancestralidade negra.Silva (2019) traz em sua pesquisa abordagens que se baseiam em corporeidades africanas e afrodiaspóricas e articula às ideias de pluralidade, movimento e ancestralidade negra presente nessas culturas, trazendo princípios da cosmovisão africana de espiritua-lidade, temporalidade e circularidade. Ela ainda analisa os proces-sos de modelo de hierarquização e subjugação dos corpos negros, verifica os significados da simbologia comunicativa dos adornos corporais e afirma que eles possuem poderosas funções nas estru-turas sociais, estabelecendo valor social, além de reforçar crenças dentro do contexto africano e utilizado como proteção diária para o corpo como meio de expressão de identidade e como forma de 83LISSANDRA PATRÍCIA CONCEIÇÃO DOS SANTOSmostrar unidade coletiva. Acredito que essa unidade coletiva seria o que chamamos de aquilombamento.Silva (2008) também traz a concepção de que o pano que nos veste também significa uma palavra que nos representa na socie-dade. Considero importante evidenciar a estética negra por meio da Dança, pois proponho que esses corpos tenham sua autoestima valorizada. Quando falo de estética negra, falo de ressignificação da imagem da pessoa negra, que por muito tempo não foi tida como referência, sendo negada e hostilizada. Sugiro buscarmos referências na estética positiva da beleza negra nos blocos afros de Salvador como o Ilê Aiyê1, o Malê de Balê2 e outros, estimulando os estudantes a se reconhecerem através dessas estéticas, valori-zando seus cabelos crespos, as cores de suas peles, as cores das vestimentas e adornos, como também as letras de suas canções.Diálogo também com a Pretagogia, conceito criado por San-dra Petit (2015), assentado nos valores da cosmovisão africana a partir da tradição oral do corpo enquantofonte espiritual e pro-dutor de saberes, a noção de território e o princípio de circulari-dade como fonte da cosmovisão africana. Segundo Petit (2015), Pretagogia é uma semântica que carrega a arte e o direito de ser genuíno e assim se afirmar. Utilizando a tradição oral africana e a literatura africana, é possível utilizar valores teórico-metodoló-gicos. Assim, é possível fortalecer através da prática a construção das identidades favorecendo seu autorreflexo e sua magnitude en-quanto crianças negras. É preciso criar uma estratégia através da Dança como pos-sibilidade para interromper processos de autonegação e racismo entre as crianças e despertar nos sujeitos a valorização da história 1 Ver em: https://www.youtube.com/@blocoileaiye. 2 Ver em: https://www.youtube.com/results?search_query=mal%C3%AA+de+bal%C3%AA. 84EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAancestral negra assim como o fortalecimento da sua autoestima e orgulho da sua história. Pensando na educação como um todo, Molefi Kete Asante (2009, p. 3) propõe pensar um método de ensi-no afrocentrado a partir de cinco características gerais:1. O método afrocêntrico considera que nenhum fenômeno pode ser aprendido adequadamente sem ser localizado primei-ro. Um fenômeno deve ser estudado e analisado a partir das relações de tempo e espaço psicológicos. Ele deve sempre ser localizado. Ou seja, este é o único modo para investigar as com-plexas interrelações entre ciência e arte, projeto e execução, criação e manutenção, geração e tradição e tantas outras áreas atravessadas pela teoria.2. O método afrocêntrico considera o fenômeno múltiplo, di-nâmico e em movimento e, portanto, ele é imprescindível para uma pessoa anotar cuidadosamente e registrar de modo pre-ciso a localização do fenômeno em meio às flutuações. O que significa que o(a) investigador(a) deve saber onde ele ou ela se encontra no processo.3. O método afrocêntrico considera uma forma de crítica cul-tural que examina a ordem e os usos etimológicos das palavras e termos para reconhecer a localização das fontes de um(a) au-tor(a). O que nos permite articular ideias com ações e ações com ideias baseado no que é pejorativo e ineficaz, e, baseado no que é criativo, transformador em níveis políticos e econômicos.4. O método afrocêntrico procura descobrir o que está por trás das máscaras da retórica do poder, privilégio e hierarquia para estabelecê-lo como o principal lugar de produção de mitos. O método estabelece uma reflexão crítica que revela que a per-cepção do poder monolítico não passa da projeção de uma ar-mação de aventureiros.85LISSANDRA PATRÍCIA CONCEIÇÃO DOS SANTOS5. O método afrocêntrico localiza a estrutura imaginativa de sistemas econômicos, partidos políticos, política de governo, forma de expressão cultural através da atitude, direção e lin-guagem do fenômeno, seja ele texto, instituição, personalidade, interação ou evento.Somando a tudo isso, trago Vanda Machado (2013) como aquela que observa e aplica os ensinamentos através do olhar an-cestral. A referida autora trata a importância de escutar os mais antigos e contar o que se escuta. As histórias contadas ajudam na formação dos indivíduos ao compreenderem a dinâmica que é viver. Portanto, é importante conhecer a história de mulheres negras e seus legados construídos através das suas Danças afro-diaspóricas. Mulheres que se encontram vivas e que continuam contribuindo para a transformação da sociedade, assim como fi-zeram comigo, formando-me. Aponto algumas delas, sabendo que existe uma infinidade de mulheres que podem ser referências dentro do contexto de cada professor e alunado. Sugiro que explore, identifique-as e dê visibi-lidade para todas elas dentro do contexto de cada um. Seguem al-guns exemplos: Amélia Conrado, Leda Ornelas, Vera Passos, Edei-se Gomes, Vania Oliveira, Inaycira Falcão, Rosangela Silvestre, Nadir Nóbrega, Edileuza Santos, Nildinha Fonseca, Marilza Oli-veira e Tania Bispo. Através do link vocês terão acesso a algumas das experimentações dançantes propostas por elas, que podem ser utilizadas como suporte nas aulas.3Para Djamila Ribeiro (2019), a história nos mostra que o colonizador tem um olhar sobre os corpos negros, sobre nosso saber, sobre nossas produções e precisamos não aceitar essa 3 Ver em: https://www.youtube.com/@guiaori-entado3794.86EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAvisão colonizadora. Corroborando as ideias da referida autora, proponho abrir espaço para que grupos e diversas vozes sejam ouvidas e levadas a sério. O lugar de fala traz, na sua essência, a consciência do papel do indivíduo nas lutas, criando uma lucidez de quando você é o pretagonista ou coadjuvante da sua própria história e vivência. Para evidenciar esse lugar de fala, podemos utilizar a Dança como “suporte” motriz dessas vozes. Onde as políticas públicas falham, a arte prevalece!Assim, as aulas também podem apresentar elementos para que as crianças criem sua própria Dança por meio de processos criativos, descobrindo uma Dança própria, validando as experi-ências que os corpos negros trazem como elemento movente, pois não podemos esquecer que, como somos corpos negros em diáspo-ra, o que criamos na atualidade também são memórias e foi a par-tir dessas memórias que demos início aos processos coreográficos.Outra proposta é apresentar vídeos de crianças dançando em diferentes regiões da África4. Eles experimentam dançar ao que estão assistindo e, após essa ação, colocar uma música de pagode e orientar que observem se existem movimentos em comum entre a movimentação que foi vista e dançada a partir do vídeo e a que eles dançam no pagode. Nesse momento eles começam a perceber que existe muita similaridade com o que eles dançam e os passos a que eles assistiram no vídeo. No final da aula, sugiro sempre con-versar sobre memória ancestral e por que temos movimentações tão semelhantes.Alacridade é um conceito utilizado por Petit (2015) que, gros-so modo, significa expressão dançante assentada no sentimento comunitário, na capacidade da criatividade, na manifestação da 4 Confira em: https://www.youtube.com/@masakakidsafricana e https://www.youtube.com/@TripletsGhettoKids.87LISSANDRA PATRÍCIA CONCEIÇÃO DOS SANTOSgestualidade, na celebração e no caráter festivo na sociabilidade. Em continuidade ao conceito de alacridade, Muniz Sodré (2017, p. 26) reflete sobre o entendimento nagô quando nos diz que, no âmago de uma filosofia de diáspora, como o pensamento nagô, a alacridade, entendida como “ponto de existência”, é uma regência afetiva que propicia essa margem dentro de um contexto social.Para despertar a alacridade, proponho o desenvolvimento musical dos alunos, que, por sua vez, podem praticar um pouco de canto e percussão, reforçando a capacidade multidisciplinar da Dança. Essas atividades também reforçam o desenvolvimento so-cial, cultural, político e cognitivo das crianças, despertando nelas a necessidade de se reconhecerem enquanto pessoas negras que compõem a nossa sociedade.A proposta é usar músicas próximas à realidade das crianças: “Sou eu Negro Lindo” de Léo Santana5, e “Menina pretinha” de MC Soffia6, que são músicas populares do pagode baiano e funk carioca, que valorizam e trazem em suas letras mensagens positi-vas sobre a pessoa negra, podendo estimular nos alunos e alunas enxergar a sua própria beleza e a beleza de seus colegas.Recomendo também músicas trazidas pelo corpo docente e é nesse momento a oportunidade de apresentar outros gêne-ros musicais para estimular o gosto dos alunos a apreciar outras canções, não desmerecendo o gosto deles. É importante procurar sempre trazer músicas que falem sobre o legado ancestral, for-taleçam o discurso racial e elevem a autoestima. Seguem alguns exemplos: “A bola da vez” – Artista: Ilê Ayê7, “A grande mãe” (música instrumental) – Artistas: Leitieres Leite & Orkestra 5 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=b3YnfIa0jUY.6 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=cbOG2HS1WKo.7 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=nmfZUmfHMQU.88EDUCAÇÃO ANTIRRACISTARumpilezz8, “Trevo, figuinha e suor na camisa” – Artistas: Emici-da e Ivete Sangalo9.Além disso, podem ser utilizadas músicas propostas pelos alu-nos. Nesse caso, se as letras depreciarem a imagem da mulher ou de qualquer outra pessoa, é necessária uma análise coletiva para possíveis reflexões e discussões antes de serem utilizadas. Quais são os comandos que a música diz ou pede? O que você pensa quando ouve esses comandos? E como se sente ao imaginá-los sendo ditos para vocês, irmãs, mães, avós ou outro membro do núcleo da sua família?Essa reflexão é para que juntos possamos discutir sobre a nos-sa imagem enquanto cidadãos negros. Se a ideia é ressignificar a nossa imagem, por que permitir e reforçar essa imagem negativa impressa em algumas músicas? A ideia não é fazer que deixem de gostar desses gêneros musicais apesar da letra, mas que possam ter uma visão consciente e crítica sobre esses discursos.Kabengele Munanga (2005) apresenta uma crítica ao livro didático sobre a perspectiva racista nos seus conteúdos. Mesmo sendo por muitas vezes o único suporte teórico para os professo-res, ainda assim é preciso ter atenção ao utilizá-los, pois estamos lidando com alunos que trazem do seu dia a dia marcas profundas da discriminação racial e, ao tratarmos sem crítica o livro didá-tico, nós, professores, corremos o sério risco de estarmos colabo-rando com essa mesma discriminação vivida por eles. Munanga (2005, p. 15) deixa clara a sua posição quanto ao que o professor deve fazer em sala de aula: “ajudar o aluno discrimi-nado para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atri-butos de sua diferença, sobretudo quando esta foi negativamente 8 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=UXloVjjqO84.9 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=pW5_20zAnB8.89LISSANDRA PATRÍCIA CONCEIÇÃO DOS SANTOSintrojetada”. Assim como o autor, aponto como sugestão pensar um ensino de Dança sob a perspectiva afrocentrada, que conflui diretamente a necessidade de “aprimoramento” dos professores e dos materiais didáticos utilizados. Para Ana Célia Silva (2011, p. 98), mesmo percebendo gran-des deficiências no livro didático, a referida autora pondera que também é possível perceber mudanças na produção desses livros quando diz:É pertinente também ponderar sobre a importância e os efei-tos das transformações da representação social do negro no livro didático, no que diz respeito à sua presença nas ilustra-ções, a partir, segundo os ilustradores e autores, da percepção da sua formação étnico-cultural, da formação étnico-cultural brasileira e da construção de modelos referenciais para os negros.Como estratégia metodológica, devemos apresentar referen-ciais afrocentrados na literatura, leituras de livros que abordem o tratamento de questões étnico-raciais para crianças, contando para elas a história que nunca foi contada, ou foi contada a par-tir de uma visão branca e colonizadora, mostrando a existência de negros e negras bem-sucedidos nos diversos setores da nossa sociedade. É importante trazer imagens positivas da negritude fa-zendo com que elas se reconheçam através das mesmas e vislum-bra alcançar lugares escolhidos por elas. Reconhecendo a deficiência do livro didático, e ao mesmo tempo sabendo que na sala de aula ele é um dos materiais mais acessíveis ao professor, cabe-nos trabalhar a partir do modo como nos orienta Munanga (2005), exemplificado nos referenciais te-óricos deste texto. As aulas práticas de Danças afro-brasileiras e populares podem acontecer com o foco nas Danças de matrizes 90EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAafricanas, com apoio de materiais audiovisuais10 que objetivaram formar o intelecto étnico e racial do alunado, além de trabalhos interdisciplinares com o objetivo de fortalecer a estética negra.As Danças africanas e afro-brasileiras estão impressas na me-mória corporal do brasileiro, justificando esse argumento por con-ta de que fomos o país da América do Sul a receber o maior contin-gente de africanos em sua história. Assim, as várias formas de se expressar são heranças do nosso povo e essas memórias compõem nosso patrimônio corporal; portanto, afirmar tal identidade man-tém essa memória viva e pulsante.Dessa forma, é necessário também saber que os conteúdos de história e culturas afro-brasileira e africana devem ser obrigató-rios para assegurar a promoção de processos de Dança, partindo de disparadores afrocentrados, como o ritmo, a estética, a memó-ria. Sugiro uma prática na qual os estudantes têm um espaço para se expressar por meio de uma prática decolonial. Assim, a sala será um espaço de ativação de memória ancestral, tendo esses sa-beres como elo essencial para reconexão do que somos enquanto povo e potência. Noutro giro, partindo do princípio de que a Dança não é so-mente repetir movimentos, proponho também uma ação teórico--prática que parte do conhecimento visual histórico dos adinkras11, que são símbolos gráficos que representam valores tradicionais, ideias filosóficas, códigos de conduta e normas sociais. Os ideo-gramas são divididos em categorias que podem ser objetos artesa-nais, seres humanos, plantas, ideias abstratas ou corpos celestiais. 10 Ver em: https://www.youtube.com/@guiaori-entado3794. 11 Para estudar sobre os adinkras, sugiro a obra Adinkra: sabedoria em símbolos africanos, coletânea organizada por Elisa Larkin nascimento e Luiz Carlos Sá.91LISSANDRA PATRÍCIA CONCEIÇÃO DOS SANTOSOs adinkras são uma tecnologia ancestral que compõe o con-junto de símbolos pertencentes ao povo Ashanti, importante gru-po étnico de Gana, mas hoje estão presentes em outros lugares do globo terrestre, principalmente por consequência dos processos das diásporas africanas. Ao utilizá-los nas aulas de Dança, contri-buímos também para a valorização e preservação do legado dessa comunicação milenar africana.Enfim, a Educação Antirracista precisa, também nas aulas de Dança, ensinar que a nossa ancestralidade vem de reis e rainhas, príncipes e princesas, trabalhadores e trabalhadoras, guerreiros e guerreiras que foram escravizados e tratados como mercadoria por conflitos internos e principalmente pelo comércio transatlân-tico escravista. Descolonizar os saberes acessando nossa verdadei-ra história é o caminho para nossa reconexão.É preciso ressignificar a ideia pejorativa que se tem do con-tinente africano evidenciando uma perspectiva positiva. Sendo assim, chegamos à conclusão sobre a necessidade de revisitarmos nossos conteúdos em Dança e demais componentes curriculares, pois será no chão da escola que se dará o reconhecimento e valo-rização dos povos que constituem nossa nação. Para Petit (2015, p. 71) “dançar, na perspectiva afro-ancestral aqui tratada, tem uma visão circular do mundo, na qual início e fim se encontram em eterna renovação”. Que a Dança guie os alu-nos no caminho do reconhecimento do corpo negro na infância, através de suas histórias, ancestralidade e experiências no mundo, trazendo-lhes as memórias ancestrais guardadas em seus corpos.92EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAReferênciasALMEIDA, S. de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.ASANTE, M. K. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição dis-ciplinar. In: NASCIMENTO, E. L. Afrocentricidade: uma aborda-gem epistemológica inovadora. Tradução: Carlos Alberto Medei-ros. São Paulo: Selo Negro, 2009. p.93-110.BRASIL. Lei nº10.639, de 09 de janeiro de 2003. Institui a inclu-são no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras provi-dências. Diário Oficial da União: seção1, Brasília, DF, ano 140, n.8, p.1, 10jan.2003. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data =10/01/2003&totalArquivos=56. Acesso em: 29dez.2017. MACHADO, V. Pele da cor da noite. Salvador: Edufba, 2013.MUNANGA, K (org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. rev. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.PETIT, S. H. Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroan-cestral e tradição oral contribuições do legado africano para a implementação da Lei nº10.639/2003. Fortaleza: EdUECE, 2015.RIBEIRO, D. Lugar de fala. Rio de Janeiro: Ed. Jandaíra, 2019.SILVA, A. C. da. A representação social do negro no livro didá-tico: o que mudou? Por que mudou? Salvador: Edufba, 2011.SILVA, L. R. da. A dança dos outros – imaginação diaspóricas para interpelar o mundo. Moringa Artes do Espetáculo, João 93LISSANDRA PATRÍCIA CONCEIÇÃO DOS SANTOSPessoa, v.10, n.2, p.91-98, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/moringa/article/download/ 49823/28988/126430. Acesso em: 25 jul. 2023.SILVA, L. R. da. Corpo em diáspora: colonialidade, pedagogia de dança e técnica Germaine Acogny. 2007. Tese (Doutorado em Artes da Cena) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.SILVA, L. R. da. Trilhas e tramas: percursos insuspeitos dos tecidos industrializados do continente africano. A experiência da África Oriental. 2008. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2008.SODRÉ, M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.O racismo ao pé do berimbau: ou quando a Educação Física entra na roda de CapoeiraBruno Rodolfo MartinsNossa ladainhaPretendo nesta roda problematizar as questões raciais que envol-vem a relação histórica da Capoeira com a Educação Física (EF). O encontro entre ambas está repleto de racismo desde o séculoXIX, indicando a Capoeira como uma atividade física para ser pratica-da pela elite, mesmo enquanto ela ainda era escrava e crioula, até o decorrer do séculoXX, nas tentativas frustradas em deformá-la como ginástica, com um tempero eugênico e nacionalista, num primeiro momento, ou com um tempero esportista e militar, num segundo momento. Em ambos, querendo apagar sua história ne-gra, defendendo sua mestiçagem e brasilidade.Hoje, a Capoeira e sua identidade ancestralizada em valores africanos são registradas como Patrimônio Cultural do Brasil e da Humanidade, e aí ficam algumas perguntas: e a EF, o que tem a ver com isso? Como pensar sua presença na formação de professores 96EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAcom essa outra perspectiva1? Que lugar é esse, da academia, dian-te da Capoeira e seus praticantes? Capoeira NA ou DA escola? E a presença de seus praticantes tradicionais na escola, vai continu-ar marginalizada e subalternizada? E seus atravessamentos com o racismo corporal, cultural e religioso? E as questões de classe, gênero, sexualidade e raça na Capoeira?De prática de pessoas escravizadas “em ânsia de liberdade”2, marginalizada, negada, silenciada, proibida legalmente e até pen-sada por uma elite como símbolo de nacionalidade, depois esporte e ginástica, a Capoeira atravessa gerações, “confrontando e resis-tindo”. Dessa forma, como um simples capoeirista na roda, pre-tendo nesse jogo desfavorável, baixar ao pé do berimbau e “sair de ponteira”3 em direção ao racismo, ao patriarcado e às desigualda-des de classe e fazer “chamadas” direcionadas à EF, à academia e à escola pela Capoeira.Assim, divido o texto tentando contemplar brevemente uma discussão histórica dessa relação entre a Capoeira e a EF, incluin-do as questões raciais que a atravessam. Em seguida, detalho um pouco mais essas questões, demonstrando como que, com o passar do séculoXX, a EF foi se apropriando da Capoeira, ao mesmo tem-po em que a Capoeira foi se embranquecendo. Damos uma passa-da de perna nos anos 1980 até a conjuntura atual para localizar as máscaras diferentes que o racismo tem usado, atualizando o proje-1 Em outro trabalho, intitulado “Capoeira: contribuições para uma formação docente contra o racismo”. Ver em: https://africaeafricanidades.com.br/documentos/Olhares_Docentes_Rei-sados_Congadas_Maracatus_Jongos_Capoeiras.pdf), comento a experiência como professor substituto de Capoeira da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 2 Termo usado por Mestre Pastinha em uma de suas célebres reflexões sobre a Capoeira. 3 Menção ao jargão usado por Lindinalvo Natividade, caríssimo Mestre Lindi, também pro-fessor de Educação Física, que foi vitimado pela covid-19: “se o racismo é uma barreira, então o jogo é de ponteira”. 97BRUNO RODOLFO MARTINSto colonial implementado no país desde as invasões europeias. Por fim, apontamos nossa “ânsia de liberdade” traduzida nos traba-lhos engajados com Capoeira, entre outros apontamentos de sua inserção na escola e na EF.Jogo miúdo entre Capoeira e Educação FísicaA primeira vez que a Capoeira foi tratada de forma mais profun-da na EF e com indicação para maiores problematizações foi no livro Metodologia do ensino de Educação Física (1992), do Coletivo de Autores, e, mesmo assim, literalmente, só houve algumas li-nhas escritas. Voltando no tempo, a primeira dissertação dentro do campo da EF contendo a Capoeira foi realizada por Mestre Nilo (Gonçalves, 1997), professor das disciplinas de Capoeira da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) até hoje; vale dizer, insti-tuição pioneira na implementação de disciplinas de Capoeira no currículo formal dos cursos de formação em EF. Contudo, essa re-lação é bem mais antiga do que os anos finais do século XX. O início do século XX tem destaque nessa história, que nor-malmente se conta aos pedaços, propositalmente, para dificultar a reflexão em torno dessa relação, em especial, para análises raciais. A abolição do regime de escravidão e a Proclamação da República com um golpe militar têm desdobramentos um tanto severos para a Capoeira e seus praticantes. Ela é inserida no primeiro Código Penal da República (Brasil, 1923), em um capítulo intitulado “Dos vadios e capoeiras”, fazendo com que haja uma verdadeira ope-ração para limar seus praticantes da sociedade e acabar com sua arte vadia e rebelde inspiradora de outros projetos libertários de vida não enquadrados no sistema vigente. Inclusive, quem lidera-rá essa campanha é Sampaio Ferraz, também um praticante. 98EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAPara além deste fato curioso, a Capoeira já era indicada no sécu-lo XIX por parlamentares para que fosse usada como ginástica4 nas escolas e nos quartéis, preparando os homens para guerrear e servir à pátria5. E, na virada do século, ela já estava sendo transformada por homens praticantes, assim como acadêmicos, todos brancos, para atender a essas demandas “nacionais”. Ela já era reconhecida e praticada entre pessoas abastadas e em regiões elitizadas na capital, como a zona sul. A Capoeira de Sinhozinho é um exemplo categóri-co nesse sentido. Mas militares e médicos, que vão estruturar a EF no Brasil, também vão investir na Capoeira, seguindo os modelos ginásticos europeus, mas agora querendo produzir uma EF própria inspirada em algo que fosse “nativo”, e a Capoeira foi eleita para isso. Ela seria a base do que foi chamado de Ginástica Nacional. Inclusive com livros sendo produzidos a partir da Capoeira, como o Guia do capoeira ou gymnastica brasileira, de O.D.C., em 1907, e o Manual de gymnastica national (capoeiragem) methodizada e regrada, escrito por Annibal Burlamaqui, o Zuma, em 1928. Mas, então, que Capoeira era essa, perseguida por ser crime, com seus praticantes sendo pre-sos, violentados e riscados do mapa, enquanto também era estudada, promovida e praticada pela academia e por pessoas abastadas?64 Ginástica é o termo ancestral para o que será chamado mais adiante, e com sentido mais amplo, de Educação Física.5 Conforme consta no Dossiê da Capoeira, “antes da Proclamação da República, em 1889, os escravos capoeiras ganharam prestígio devido à sua participação na Guerra do Paraguai, que ocorreu entre 1864 e 1870”Con-temporânea (G-PEC), filiado ao Conselho Nacional Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3116783239543777; e-mail: ericojoses@yahoo.com.br.14EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAque grande parte de docentes e discentes nunca viram de forma concreta tal normatização2.Sabemos que o principal motivo do rechaço à sua implemen-tação é o racismo. Isso é fato incontestável e deve ser evidenciado de forma direta e sem melindres. A população negra no Brasil, desde sua invasão, colonização e escravização de africanos/as, sofre as violências físicas, psíquicas, morais e todos os tipos de assédio, independentemente de sua área de atuação profissional e de sua classe social. Notório é que não podemos passar à margem das discussões sobre suas interseccionalidades, posto que quanto mais camadas se acrescentam ao fato de ser negro/a – ter pele retinta, ser mulher, ser LGBTQIAPN+, ser pessoa com deficiência, ser pobre, ser quilombola, ser de religião de matriz africana, ter sobrepeso etc. –, mais o racismo é letal.Para exemplificar essa constatação, trazemos o assassinato brutal de Mãe Bernadete3, ocorrido em 17 de agosto de 2023 den-tro de sua própria casa, onde foi alvejada a tiros, após sete anos de busca por justiça pelo assassinato do próprio filho, Fábio Gabriel Pacífico dos Santos, o Binho do Quilombo, e uma vida devotada a denunciar as perseguições sofridas por quilombolas da região. Tal assassinato, dentre inúmeros que ocorrem diuturnamente no país ceifando vidas negras, escancara a máscara mais cruel do racismo à brasileira na qual a contradição se expõe pelo fato de que brasi-leiros/as não se consideram racistas ou não veem o Brasil como 2 BRASIL. Lei nº10.639, de 09 de janeiro de 2003. Institui a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 140, n.8, p.1, 10 jan. 2003. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagi na=1&data=10/01/2003&totalArquivos=56. Acesso em: 20 ago. 2023.3 Bernadete Pacífico, líder quilombola e ialorixá de 72 anos, matriarca do Quilombo Pitanga dos Palmares e ex-Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador (BA).15ERICO JOSÉ SOUZA DE OLIVEIRAum país racista, em contraponto às estatísticas que denunciam o extermínio da população, sem nenhuma comoção social.Esses homicídios são o lado mais agudo do horror contra ne-gros/as no país, também permeado por outras mortes, como as epistemológicas, simbólicas e subjetivas, ocasionadas pela chaga do racismo, que continua a extirpar a humanidade de quem não está dentro dos padrões e normas das colonialidades do poder, do saber e do ser, fortalecidas pelas instituições educacionais, religio-sas, políticas, artísticas e culturais4.Diante desse quadro de aniquilamento secular, os movimen-tos sociais negros que atuam há muito contra o aniquilamento de sua população perceberam desde cedo que, somente por meio do acesso à educação, à arte e à cultura, negros/as poderiam quebrar algumas das inúmeras barreiras criadas pela colonialidade, cujo pilar central é o racismo e o medo da perda de seus privilégios seculares e escravocratas5.É nessa perspectiva que Abdias do Nascimento, quando da criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, estabeleceu políticas de acesso à população negra, por meio de cursos de alfabetização, profissionalizantes, educação política, além do trabalho artístico-pedagógico que revolucionou a his-tória do teatro brasileiro. Nos idos de 1977, ele já clamava pela inserção da história africana e afrodiaspórica nos conteúdos ofi-ciais de ensino:4 WALSH, C. Introducción: (Re)pensamiento crítico y (de)colonialidad. In: WALSH, Ca-therine (org.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial: reflexiones latino-americanas. Ecuador: Universidad Andina Simón Bolívar/Ediciones Abya-Yala, 2005. p. 16-36.5 MALDONADO-TORRES, N. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 29-53.16EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAeste Colóquio recomenda que o Governo Brasileiro inclua um ativo e compulsório curriculum sobre a história e as culturas dos povos africanos, tanto aqueles do continente como os da diáspora; tal curriculum deve abranger todos os níveis do sis-tema educativo: elementar, médio e superior6.Como era de se esperar, o governo brasileiro virou as costas para essa demanda por quase trinta anos, somente instaurando tais diretrizes em 2003, através da Lei aqui expressa, depois de dé-cadas das lutas de organizações negras. Porém, mesmo como uma obrigatoriedade legal com vinte anos de existência (é preciso repe-tir incansavelmente), as garras do racismo se mostram ainda mais ferozes por meio da rejeição à introdução dos conteúdos africanos e afro-brasileiros no chão da escola e da universidade que, como boas reprodutoras do racismo institucional e estrutural7, desvelam tantas outras situações de violência e demonização raciais8.Nas escolas e universidades, a concretização da Lei nº10.639/03 fica, geralmente, a cargo de docentes negros/as, que, com muita dificuldade devido às atitudes contrárias de seus/suas colegas de trabalho, levam a cabo propostas pedagógicas enegrecidas para que as gerações futuras possam ter acesso aos conhecimentos que lhes foram negados em sua escolaridade.Tais ações antirracistas são muito bem explicitadas neste valoroso livro, organizado pela competente e obstinada profes-sora e pesquisadora Régia Mabel da Silva Freitas, que, de forma 6 Trata-se do Colóquio do Segundo Festival Mundial de Artes e Culturas Negras, realizado em Lagos (Nigéria), entre 15 de janeiro e 12 de fevereiro de 1977. NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.7 ALMEIDA, S. L. de. O que é racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.8 Faz-se necessário informar que o racismo institucional e estrutural não é um ente abstrato, mas um mecanismo de opressão, violência e morte mantido pelas pessoas em seus lugares de privilégio. No caso da Educação, encontra-se tanto na gestão quanto na própria docência. 17ERICO JOSÉ SOUZA DE OLIVEIRAincansável, vem reescrevendo a “história do teatro brasileiro”, através das histórias dos teatros negros no Brasil, constelando uma plêiade (como ela própria nomina) de artistas, pesquisa-dores/as, intelectuais e docentes negros/as e revelando para o mundo suas criações e reflexões.Em seu escrito intitulado “O pretagonismo cênico-pedagógico antirracista do Teatro Negro brasileiro”, Mabel Freitas nos presen-teia com sua vertical pesquisa sobre os grupos de Teatro Negro brasileiros, mostrando a diversidade de artistas da cena que se unem na realização de um propósito cênico-militante, tornando--se, ao mesmo tempo, veículos de arte, cultura e educação antir-racistas em forma de poética, estética e episteme afrocentradas, reveladas na tríade do Teatro Negro brasileiro criada pela própria autora para abarcar as nuances e estratégias da cena negra: Ler (kawe) – Dizer (wéfun) – Transformar (yépada).Atravessando décadas, a autora nos traz diversos grupos e empreendimentos teatrais negros, desde a Companhia Negra de Revista (1926-1927), de João Cândido Ferreira e Jaime Silva, Com-panhia Teatral Ba-Ta-Clan Preta (1927), de João Cândido Ferreira, e o Teatro Experimental do Negro (1944-1961), de Abdias do Nas-cimento, a diversos outros espalhados pelo Brasil na atualidade, como o Grupo Bambarê – Arte e Cultura Negra (Pará), Os Crespos (São Paulo), Grupo Teatral Caixa Preta (Rio Grande do Sul), Ban-do de Teatro Olodum(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2006, p. 15). Sua eficácia enquanto arte marcial já era reconhecida antes da guerra, e almejada como potência para o treinamento militar nacional, em que seu período preparatório seria sua prática nas escolas. 6 O debate que segue é fruto de estudos que tenho realizado, que ainda não foram publi-cados em artigo, mas que foram já apresentados parcialmente em dois eventos: Racismo e eugenia: entre a capoeira e a ginástica nacional (GT 01: Culturas populares e Capoeira do IV Seminário Griô: Culturas Populares e Diversidade, do Grupo Griot-UFBA, 2021) e Ginástica nacional: capoeira e racismo na Educação Física (X Simpósio de Educação Física e Dança da UFRJ, 2021).99BRUNO RODOLFO MARTINSApesar de não termos dados precisos sobre a cor para quem se voltava a lei, o momento histórico que prezava políticas públicas de apagamento corporal e simbólico das populações africanas e de seus descendentes nos apresenta essa contradição quando se trata de Capoeira: as pessoas pretas e pobres não mais permitidas de realizar sua prática de Capoeira, enquanto as pessoas abastadas, estudadas e brancas se inspiravam nela para transformá-la em um modelo ginástico da EF nacional, desprovido de seus aspectos ori-ginários africanos, culturais e corporais.O início da República elenca duas questões principais nos de-bates sobre os projetos de nação e de população brasileiras: a raça e a doença. A medicina ocidental se impunha às medicinas tra-dicionais antes praticadas em “terras brasilis” hegemonicamente. Isso contribuiu para que as teorias e práticas higiênicas e eugêni-cas se consolidassem enquanto resoluções dessas duas questões, dando suporte às ideias de “modernização” da nação no início do século XX. A EF também terá como base esse tripé: medicina-hi-giene-eugenia.Era preciso recriar a sociedade em que as elites estavam que-rendo viver. Essa tarefa ficou nas mãos de médicos e pesquisa-dores da área, como Miguel Pereira, Roquete Pinto, Vital Brazil, Oswaldo Cruz: todos consideravam que a doença unificou ou co-meçou a unificar o país, a caminho de ser uma nação. As ciências, em especial, as Ciências Médicas, serviriam a esse propósito. As questões higienistas foram derivadas do crescimento desordenado das cidades, das situações precárias em que a população negra se encontrava no pós-abolição, na grande imigração europeia pro-movida pela República, na intensa capacidade produtiva e comer-cial, nas diversas epidemias e no grande número de mortes por doenças, daquele momento histórico.100EDUCAÇÃO ANTIRRACISTANa prática, enquanto na escola as parcelas eugenizadas ou po-tenciais tinham acesso às ginásticas, nas ruas as parcelas “degene-radas” e “criminosas” tinham acesso à Capoeira. Os “vadios”, gente considerada não produtiva para a sociedade, desprovida de bens, terras e oportunidades no pós-abolição, e os “capoeiras”, motivo de medo e desordem, deveriam ser controlados, domesticados e/ou extinguidos.Saindo de ponteira no racismoCom a retirada da Capoeira do Código Penal, sua entrada nas “academias”7 e seu status integrado ao movimento esportivo em grande expansão na década de 1930 no país, o debate ficou um tanto mais complexo, especialmente entre os sociólogos, antropó-logos e professores de EF.As ideias em torno da apropriação da Capoeira continuaram. Para Lyra Filho (1973, p.319), “a Capoeira tende a constituir um desporto brasileiro culturalmente útil ao povo e, especialmente, às forças armadas”. Gilberto Freyre ([19--] apud Lyra Filho, 1973, p. 246) defende essa mesma enunciação, incluindo ainda que, “com abono sociológico”, a capoeira poderia ser classificada “den-tro da cultura nacional do Brasil como um jogo folclórico de ori-gem primitiva”. Para ambos, a Capoeira deveria ser absorvida pela população que não fosse a parcela julgada “primitiva”. Sem esse “abono” (lê-se “embranquecimento”) e sua prática continuada en-tre seus povos originários criadores, ela continuaria “primitiva”, 7 Conforme consta no Dossiê da Capoeira, “é necessário dizer que este fenômeno acontece num contexto histórico em que se dá um processo de renovação institucional das manifesta-ções culturais negras em busca de legitimação, legalização jurídica, construção de autonomia territorial, visibilidade na imprensa, aceitação social, afirmação cultural, e maior expansão da sua prática para outras camadas sociais” (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2006, p. 37). A organização da população negra nesse período também foi sendo organizada em sindicatos e terreiros.101BRUNO RODOLFO MARTINSsem uma evolução que a colocasse “em seu lugar ao sol” enquanto desporto (Lyra Filho, 1973, p.359).Para se tornar esse modelo ginástico, ela deveria ter sua his-tória negra, africana e escrava apagada. Para o mesmo Lyra Fi-lho (1973, p.352), “a luta nacional foi corrompida pelo povo bai-xo, saído do eito da escravidão, e pelos seus descendentes infiéis”. O autor é taxativo em sua afirmação de que o problema da Ca-poeira seria seus praticantes “afrodescendentes”. Para ele, “o mu-lato, sim, no caminho de ser branco, muito mais pode concorrer para a nacionalização dos desportos, inclusive através do jogo da Capoeira” (Lyra Filho, 1973, p.367). E ainda destaca que “o jogo da capoeira haverá de enriquecer-se culturalmente, com suas re-gras, seus uniformes, seu conteúdo sociológico” (Lyra Filho, 1973, p.344). Em outras palavras, pobre por ser de origem africana, rica ao ser embranquecida. Para o antigo professor da EEFD, Benedic-to Peixoto (1972, p.94), essa “condição popular” seria seu “pecado original” (e pior: esse comentário é feito num pequeno artigo em que ele pretende comentar algo sobre Capoeira Angola).A auto-organização das comunidades tradicionais de Capo-eiras, incluindo lideranças como Mestres Bimba, Pastinha e ou-tros, foi efetiva e conseguiu garantir que suas raízes étnicas fos-sem valorizadas fora do mundo acadêmico, mas não bloqueou o desenvolvimento desse outro projeto ginástico. Professores da EF como Latorre de Farias, Benedicto Lemos Peixoto, Vinicius Ruas investiram pesquisas e esforços para que “sua metodologia” fosse “aperfeiçoada”, já em 1939 (Gonçalves, 1997, p.45). Lamartine Pe-reira da Costa, militar e discípulo de Sinhozinho, e outro ícone da EF do país, recriou o manual ginástico de Zuma no livro Capoeira sem mestre, em 1962, sendo mais “uma tentativa frustrada da Edu-cação Física de se apropriar da capoeira” (Silva, 2008, p.107).102EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAApesar de “frustradas”, essas tentativas têm repercussão até hoje, com defesas e atualizações desse discurso8, no qual seu aprendizado seria realizado por meio de tecnologias digitais de in-formação e comunicação, ou seja, também a distância e sem con-vívio social, desconsiderando o convívio coletivo em que se apren-de tradicionalmente, ou mesmo a exclusão digital, demarcando que tais defesas estão estritamente associadas ao mercado. Não plenamente “frustrado”, o sistema de federações foi implementa-do na década de 1970, com muita influência militar e acadêmica, numa tentativa de normatizar e eliminar as diferenças existentes na diversidade da Capoeira.Outras perspectivas de estudo da Capoeira começaram a ser ensaiadas pela academia já na década de 1980. O primeiro traba-lho em nível strictu sensu nesse sentido foi o de Julio de Tavares, em 1984, o clássico Dança de guerra: arquivo-arma, que depois vi-rou livro homônimo9. No entanto, os primeiros poucos trabalhos na EF ainda são conservadores, tanto na relação entre a Capoeira e a mesma, tanto e especialmente no quesito das relações raciais. Quanto a isso, a prévia do mapeamento da produção acadê-mica em torno da Capoeira, realizada por Gabriel Cid e Marcelo Costa (2020, p.7), registra o seguinte: Nosso universo de 375 trabalhos estão classificados nas áreas de Ciências Humanas; Linguística, Letrase Artes; Ciências da Saúde; Multidisciplinar; e Ciências Sociais Aplicadas. As Ciências Humanas representam mais da metade (55%) das produções acadêmicas, abrigando programas de Ciências 8 Em seu trabalho, Barcellos e Martins (2021) chamaram de “profecia de morte” da velha Capoeira um caso notório ocorrido no início das restrições pandêmicas no país, envolvendo uma declaração de um capoeirista que afirmara que a pandemia traria o fim do modo antigo e tradicional de ensino da Capoeira em prol do uso das tecnologias digitais; caso em que os autores destacam o racismo e o epistemicídio.9 Ver nas referências: Tavares (2012).103BRUNO RODOLFO MARTINSSociais, Sociologia, Antropologia, Filosofia, Educação, Psi-cologia, Geografia e História. A área de conhecimento Lin-guística, Letras e Artes representa 16% de nosso universo e abriga programas de Letras, Artes, Música e Teatro. Já a área de Ciências da Saúde compreende 15% e abriga os programas de Educação Física e de Saúde. A área Multidisciplinar abran-ge 10% das produções e abarca programas interdisciplinares, multidisciplinares e ambientais. Em Ciências Sociais Aplica-das observamos um total de 4%, com pesquisas em progra-mas nas áreas do direito, administração e comunicação.Observa-se que os de EF estão contidos entre os 15% (56 tra-balhos), e ainda divididos entre outros programas voltados para Saúde. Ficam indícios também de que nem todas as pessoas que produziram trabalhos sobre Capoeira e EF o fizeram em progra-mas de pós-graduação da mesma, e que provavelmente buscaram programas nas áreas de Ciências Humanas, com destaque para a Educação ou Multidisciplinar. Gabriel Cid e Marcelo Costa (2020, p.7) ainda levantam que “no universo de teses e dissertações há trinta e seis trabalhos com referência explícita à temática étnico-racial”, mas não especificam em que áreas esses trabalhos foram realizados. E trazem mais da-dos que podemos usar neste momento: Temos um total de oitenta e oito trabalhos que fazem referên-cia à Educação de uma maneira mais geral. Destes trabalhos temos trinta que discutem a problemática da capoeira especifi-camente no ambiente escolar e uma dissertação que há debate com relação à implementação da lei 10.639.Curiosamente, apesar de não ter sido registrado, esse trabalho sobre a Lei nº10.639 pode ser justamente a dissertação do profes-sor de EF e capoeirista Daniel San Gil (2014), realizada no pro-grama de Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), tratando da Capoeira nas aulas de EF. 104EDUCAÇÃO ANTIRRACISTABuscando analisar a repercussão do tema racial na EF, através da Revista Brasileira de Ciências do Esporte, o trabalho de Leydia-ne Sales e Neil Almeida (2015) aponta que dos 93 exemplares da revista até 2013, só houve 25 trabalhos com temática racial. Entre esses, 72% tematizavam a Capoeira. Esse trabalho demonstra um panorama que continua presente na área: ainda são incipientes a pesquisa e o engajamento nas questões raciais na EF, mas, quando existem, usam bastante da Capoeira para conseguir problematizar o racismo. Apesar disso, demonstrar a potência da Capoeira destaca tam-bém severos limites da academia, seja na produção de conheci-mento ou na formação inicial em preparar profissionais com uma base mínima para se engajar contra o racismo. Restam os limites estereotipados de trabalho com culturas negras, africanas ou afro--brasileiras, ou UMA delas, no caso a Capoeira, para tentar se tra-balhar algo sobre racismo. Deve-se destacar ainda que o trabalho de Sales e Almeida (2015) usou como recorte a Revista do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), o órgão acadêmico da EF de maior expressão no país, e que reúne uma parte das pessoas estudiosas da área.Na esteira desse movimento, temos reflexões de pessoas atu-antes em escolas e universidades públicas, que aprofundam essa questão racial na EF a partir dos anos de 2000, seja sobre a refle-xão em torno da “negação do corpo negro” (Mattos, 2007) e “es-tética negra” (Mattos, 2009) nas aulas de EF, de Ivy Mattos; seja como “prática multicultural” crítica na formação continuada, de Joe Gomes (2011); seja com o foco na “diversidade cultural e rela-ções étnico-raciais” (Martins, 2013), ou na questão da “descoloni-zação da EF” (Martins, 2021), ambos meus; seja uma EF voltada para a implementação da Lei nº10.639, de Dora Coutinho (2014), 105BRUNO RODOLFO MARTINSou na direção de uma Educação Física cultural, de Marcos Neira (2019), em que haveria espaço para a questão racial, apesar de não ser o foco. Mais recentemente tivemos o lançamento de duas coletâneas: uma específica do campo da EF, Educação Física e di-ferença, organizada por Willian Ribeiro, Rita Silva e Denise Destro (2021), e outra que possui um artigo de Felipe Formoso, intitulado “Decolonialidade e Educação Física: epistemes e pedagogias ou-tras como possibilidade de uma educação antirracista” (2023).Ao que tudo indica, os primeiros trabalhos em nível strictu sensu que envolvem EF e Capoeira com o foco nas questões ra-ciais são o de Giuliano Mendonça (2013) e o supracitado de Da-niel San Gil (2014). Em trabalho mais recente, Mendonça, Freire e Miranda (2020) buscaram compreender como as relações ét-nico-raciais têm sido estudadas na EF escolar, e depois de uma triagem foram selecionados das bases de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e analisados 25 estudos (20 dissertações de mestrado aca-dêmico, 4 de mestrado profissional e 1 tese de doutorado). Destes, mais uma vez, a Capoeira aparece como “o tema mais prevalente, sendo apresentada em 14 estudos” (Mendonça; Freire; Miranda, 2020, p.15). Ou seja, é significativo atentar para os caminhos que a Capoeira tem feito por dentro da EF, enquanto ela a utiliza para visibilizar e problematizar o racismo.Esquivas e contragolpes do projeto colonialOs setores combativos da EF lutam para que ela consiga ser am-pliada e transformadora do seu histórico conservador, com a supe-ração das tendências pragmática, militarista, higienista, tecnicis-ta e desportivista, alimentadas pelo conservadorismo (Sindicato 106EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAEstadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro, 2019, p.1). No campo teórico, vem ganhando força a questão do racismo na área e em seu combate10. Contudo, a busca incansável de se reconhecer a Capoeira por apenas o viés da esportivização deixa nítido um traço de racismo institucionalizado11, produzido pela EF, em que se tem a preocupação de se apropriar do que não lhes é pertencente: sempre de forma violenta e denunciado pelos setores mais radicalizados. Alinhados com isso, são os desdobramentos do (ab)uso do poder institucionalizado nas ações do sistema Confef/Crefs12 em direção constante à Capoeira13.A criação do sistema Confef/Crefs foi uma das formas que o projeto colonial usou/usa para precarizar a EF, com o discurso de “proteger a área”, e ainda investir contra a Capoeira e seus pratican-tes. Desde então, as tentativas de cooptação de praticantes, mestres 10 Para se ter uma ideia sobre isso, o “Grupo de Trabalho Temático 13 – Relações Étni-co-raciais”, do CBCE – a instituição de pesquisa mais renomada da Educação Física –, foi criado em 17 de setembro de 2021, algo minimamente tardio e moroso. Foi somente depois de intensa mobilização em nível nacional, culminando na organização e execução do Seminário Temático do GTT Educação Fisíca e Relações Étnico-Raciais no âmbito do CBCE/Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (Conbrace), é que a roda foi aberta. Pleiteei e mediei uma mesa que trouxe a Capoeira para o jogo, intitulada “Racismo, Capoeira e Educação Física” (ver em: https://www.youtube.com/watch?v=yHWzl0Yi944&list=PLw80DnnnUZS0tBB_26s2KEo-gAStBq30xj&index=7&ab_channel=EscoladeEduca%C3%A7%C3%A3oF%C3%ADsicaeDespor-tos%2FUFRJ),em que praticantes de Capoeira localizadas na fronteira com a Educação Física pudessem problematizar o racismo. Foram as ilustres presenças de Mestra Darlene Costa, Flora Margarida, Flávia Noronha e de Mestre Lindi, Lindinalvo Natividade.11 “No caso do racismo institucional”, diz Silvio Almeida (2019, p.27), “o domínio se dá com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade”. Não são levianas as tentativas de “incluir” a Capoeira enquanto “Educação Física”, com a retirada do protagonismo negro de sua prática e o controle branco sobre ambos.12 O nome do sistema se refere ao Conselho Nacional de Educação Física (Confef) e aos Conselhos Regionais de Educação Física (Crefs).13 Como exemplo, a Resolução Confef nº46 de 2002 dita em seu art. 1º que “o profissional de Educação Física é especialista em atividades físicas, nas suas diversas manifestações: [...] lutas, capoeira, artes marciais [...]”.107BRUNO RODOLFO MARTINSe mestras, forçando ou seduzindo, são permanentes. Tanto é que a Revista nº114 do sistema tem em sua matéria principal de capa a Capoeira, com seus desdobramentos produzidos pelo próprio sis-tema, com os cursos de provisionado voltados para capoeiristas. O MNCR, Movimento Nacional Contra a Regulamentação da Pro-fissão, assim como organizações autônomas de Capoeira (e outros setores assediados pelo sistema), se articularam durante anos em resistência ao sistema, movendo ações contra o próprio e conse-guindo, por fim, se defender institucionalmente contra o mesmo15.A tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº3.42816, que extinguiria o sistema Confef/Crefs, foi suspensa após quatro votos favoráveis à sua procedência em 2020, levan-do seu julgamento ao plenário em maio de 2021. Contudo, nesse período, o Confef articulou-se com a presidência da Repúbli-ca, que encaminhou o Projeto de Lei (PL) nº2.486, em julho de 2021, que procurava sanar o vício de origem argumentado pela ADI nº 3.42817. No ano seguinte, o PL em questão foi promul-gado como Lei n° 14.386, de 27 de junho de 2022, atualizando 14 Nas referências ver: Confef: Revista do Confef (2001).15 Dois exemplos são a Ação Civil Pública nº 2002.51.01.004894-2, que fez com que o CREF1 tivesse que redigir uma nota para declarar quem “não precisa” se filiar (ver em: https://cref1.org.br/perguntas-frequentes/legislacao/quem-sao-os-profissionais-de-educacao-fisica-que--nao-estao-obrigados-a-se-registrar-no-sistema-confefcref/); e a decisão contra o CREF4 do Desembargador Federal Márcio Moraes na Apelação Cível nº 2003.61.00.016690-1/SP, “em consonância com diversas Cortes Federais” (ver também: https://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/523435). 16 O processo pode ser acessado em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?%20incidente=2279182.17 Mais detalhes constam no manifesto contra a regulamentação da profissão de Educação Física e criação do Conselho Federal e Conselhos Regionais de Educação Física, publicado em 1º de setembro de 2021. Ver em: http://mncref.blogspot.com/. 108EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAe ratificando a existência do sistema Confef/Crefs18.Conforme um texto panfletário do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ), as batalhas que vieram depois da instalação do sistema foram travadas (e continuam sendo até hoje) pelos sindicatos de trabalhadores de educação, estaduais e municipais, das redes públicas e privadas, os quais contariam com o apoio político, científico e teórico do MNCR (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Ja-neiro, 2019). Mais que sindicatos: as organizações autônomas dos setores assediados, além da Capoeira, também tiveram êxito em suas mobilizações políticas e ações na justiça.Apesar de dados escassos ou desatualizados sobre a quantidade de professores de EF, dados noticiados de 202019 demonstram que há um pouco mais de 500 mil filiados. Já os dados de praticantes de Capoeira, na época de publicação do dossiê do Instituto do Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2006, retratavam que havia no país em torno de 6 milhões de praticantes. Conside-rando que, entre esses, supostamente tivéssemos uma quantidade de 500mil de praticantes que ensinassem Capoeira, entre mestras e mestres e outras graduações. Se esses fossem forçados a pagar o re-gistro do Cref, teríamos a receita do mesmo praticamente dobrada.Outra questão a ser notada é que muitas dessas pessoas da Ca-poeira não cobram nada de suas turmas, além de muitos locais de atuação serem periferias e de presença majoritária da população 18 Mais uma vez o sistema tenta avançar em outros campos. Nesse caso, propôs o inciso “XVI – estabelecer, mediante ato normativo próprio, a lista de atividades e de modalidades esportivas que exijam a atuação do profissional de Educação Física, nos termos do art. 3º desta Lei”, que curiosa e coerentemente foi vetado, indicando “vício de inconstitucionalidade”, e que “contraria o interesse público”. Ver em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Msg/Vep/VEP-333-22.htm.19 Conferir em: https://www.migalhas.com.br/quentes/324453/stf-pode-extinguir-conselho--federal-de-educacao-%20fisica--caso-esta-em-votacao-no-plenario-virtual. 109BRUNO RODOLFO MARTINSnegra e pobre. Não seria somente uma ação neoliberal de contro-le de profissionais de EF e dos nichos de mercado, mas também de uma ampliação dessa ofensiva do sistema. Junto a isso, com o avanço na Capoeira, uma parcela duplamente afetada seria a de praticantes negras e pobres.No entanto, isso é apenas uma faceta da questão. Há capoeiris-tas que são a favor do sistema Confef/Crefs, assim como há professo-res de EF também a favor do atual sistema de Conselho, ou de outro tipo de Conselho. Numa constatação mais dramática, há professores de EF que também são capoeiristas e que defendem o sistema. Mais ainda, e com uma dose de incoerência política: há professores (pes-quisadores acadêmicos, inclusive no CBCE) que se dizem engajados na luta contra o racismo na EF e que defendem o sistema. Identificar o sistema como um dos braços do conservadorismo na área é uma condição fundamental em busca de uma coerência po-lítico-pedagógica20 na luta contra o racismo, como também em de-fesa da Capoeira nessa relação notadamente desfavorável com a EF. Outro braço do conservadorismo que tem potência de afetar não só a EF, mas toda a educação nacional, é o Movimento Escola Sem Partido (Mesp). Apesar de seus projetos já terem sido julgados inconstitucionais ao longo de anos, sua força conservadora age independentemente de sua legalidade. Esse movimento deixa ex-plícito o projeto de educação que deseja, pautada no controle de opinião, na censura e impedindo trabalhos que estimulem a refle-xão crítica sobre a vida. Apesar de ter ficado sem muita expressão em sua criação, o movimento ganhou força quando tremulou a bandeira da suposta 20 Sobre isso, Paulo Freire (1996, p.27) é categórico: “este esforço, o de diminuir a distância entre o discurso e a prática, é já uma dessas virtudes indispensáveis [ao trabalho docente] – a da coerência”. 110EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA“ideologia de gênero”, junto com a ascensão e eleição de diversos políticos conservadores e de ultradireita, culminando, em 2018, na eleição de Bolsonaro. Cabe ressaltar que ele não só tem alinha-mento com o Mesp, como também teve formação militar em diver-sas de suas escolas, com destaque para seu desempenho enquanto atleta, e que o sistema Confef/Crefs se identifica ideologicamente com suas políticas (Sindicato Estadual dos Profissionais de Edu-cação do Rio de Janeiro, 2019).A primeira vítima dessa escalada conservadorana política nacional foi Mestre Moa do Katendê, justamente um homem pre-to, capoeirista, ativista popular em vários movimentos culturais da Bahia, engajado na luta contra o racismo. Ele foi assassinado com facadas ao expressar sua posição política após o resultado parcial do primeiro turno das eleições (Mestre [...], 2018).Ainda sobre o Mesp, seu tempero é especialmente racista, seja: (1)na projeção do controle sobre as populações pobres afetadas pelo racismo por meio do controle da escola, com destaque para as públicas, e de seus profissionais engajados; seja (2)na rejeição ca-tegórica ao estudo de culturas africanas e indígenas, com o argu-mento de que esse estudo não passaria de proselitismo religioso. E sexista, conforme esmiuçam Martins e Moura (2018, p.11): “as mulheres pobres e negras são as mais atingidas pelo Escola Sem Partido”: seja enquanto profissionais de educação, seja enquanto estudantes, seja enquanto vítimas de violência patriarcal.Como se não fosse suficiente, outro braço do conservadoris-mo, alinhado com esses projetos, é o que tem sido chamado de Capoeira “gospel” (Schreiber, 2023). Além de distorcer fundamen-tos da Capoeira ao usá-la para a conversão de fiéis como instru-mento de evangelização de nível equiparado a livros sagrados, traz em sua prática o Cristianismo mais reacionário e trabalha com o 111BRUNO RODOLFO MARTINSapagamento da memória ancestral viva no meio da Capoeira. Um caso exemplar de apropriação cultural (Carvalho, 2004; William, 2019)21, em que suas raízes identitárias étnicas com vistas aos po-vos africanos (e indígenas) são negligenciadas, desrespeitadas, quando não simplesmente descartadas. Rodney William (2019, p.37) destaca ainda sobre isso que, [...] quando se tenta transformar a capoeira numa simples dança, apagando seu passado de resistência, eliminado suas referências negras, catequizando-a por meio de uma roupa-gem gospel, desvirtua-se completamente seu significado, comete-se um crime contra todos aqueles que a inventaram, preservaram e legaram-na a seus descendentes como um va-lor essencial de sua identidade.Mas o drama continua: um dos maiores problemas quanto à “gospel” é sua articulação política que existe em nível nacional. A Frente Parlamentar em Defesa da Capoeira é composta basica-mente por políticos conservadores e cristãos oriundos, por exem-plo, do Republicanos, partido da Igreja Universal do Reino de Deus. Seguindo a linha de atuação, esses mesmos setores, também ligados ao Ministério do Esporte, têm promovido ações associando a Capoeira por meio de seu viés esportivista, inclusive fora do país, com destaque para países africanos22.A todo momento essa articulação se aproxima da Capoeira na escola. É justamente o lugar onde todos esses setores se encontram 21 Aqui vale o debate contundente de José Jorge de Carvalho sobre a antropofagia con-veniente das classes sociais e raciais privilegiadas de nossa sociedade, com uma prática de “apropriação e expropriação” diante de culturas tradicionais de matrizes indígenas e africa-nas, para (ab)usos à sua vontade e em demonstração de poder. Rodney William (2019, p.88) é taxativo e considera que a “Capoeira gospel” é estratégia de genocídio, é apropriação cultural elevada ao limite da crueldade e do desprezo a uma tradição, é uma fraude imensurável, talvez sendo o exemplo mais acintoso de apropriação cultural.22 Conferir em: https://www.youtube.com/watch?v=DEFrOIS0v3g.112EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAcom um objetivo em comum: desenvolver trabalhos de Capoeira de forma domesticada maciçamente. Sistema Confef/Crefs, Escola Sem Partido, a tal da “gospel” e seus desdobramentos políticos, a defesa de uma Capoeira esportivista... Tudo isso para enquadrá--la conforme as regras do sistema colonial, para render frutos em favor do mesmo. Afinal, que tipo de Capoeira chegaria às escolas (dentro ou fora da Educação Física)? As favorecidas por todo esse conglomerado em torno do poder e com esses objetivos? Ou Capo-eiras que tratem de forma profunda as questões raciais, de gênero, de classe, entre outras similares?Por fim, mas não menos dramático, há de se refletir sobre a existência de capoeiristas alinhados com o bolsonarismo, sua agenda de ultradireita, e sua identificação com esse conglomerado em torno do poder. Isso sem contar com capoeiristas que se assu-mem racistas, machistas, elitistas e algumas vezes monarquistas.A Capoeira mandinga com a escolaNa esteira do que há de bom em se escrever, porque “nem tudo é tudo totalmente”23, se faz pertinente chegarmos ao final desse ri-tual mapeando as táticas da Capoeira enquanto infiltrada na esco-la e na EF. Especialmente quando se consegue produzir trabalhos engajados e com aprofundamento em torno das questões raciais. Seja contribuindo para a racialização da EF, ou servindo como ma-triz para que ela se torne mais diversa; seja “por fora” da EF, ser-vindo como referencial cultural negro, africano, afrodescendente, oriundo de movimentos populares, e especialmente, denunciando, afrontando e combatendo o racismo na escola.23 Frase recorrente de Mestre Brinco, um ilustre representante da Escola de Pensamento Pastiniano no Rio de Janeiro. 113BRUNO RODOLFO MARTINSQuanto aos aspectos legais, é importante destacar sempre um número mais que suficiente de documentos oficiais que encami-nham, sugerem e/ou favorecem um trabalho contra o racismo na escola e na EF, e alguns outros que apontam a inserção da Capoei-ra, com destaque para seus aspectos educacionais a serem “apro-veitados” pela escola. Em termos nacionais e de nossa história re-cente, a própria Constituição (Brasil, 1988) investe, nas letras dos capítulos sobre Educação e Cultura, na valorização da diversidade cultural existente em nossa população. A Lei de Diretrizes e Bases, a LDB (Brasil, 1996), lei máxima da educação nacional, espelha o que consta na Constituição, só ampliando o tratamento que deve ser dado a essa diversidade cultural por força de leis anos depois.Na sequência, foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que serviram como fundamento oficial durante algum tempo para os trabalhos pedagógicos, tratando com desta-que também a própria EF (Brasil, 1988, 2000). A novidade foi, em meio a esses Parâmetros, os Temas Transversais, que deveriam ser envolvidos durante todo o trabalho pedagógico e em todos os com-ponentes curriculares, e que favoreceu a realização de ações mais engajadas ou minimamente mais ampliadas, se comparados ao currículo tradicional veiculado na época. Alguns desses traziam à tona as questões de Ética, que poderia ter desdobramentos como (in)justiça e (des)respeito; de Orientação Sexual, indicando tra-balhos com o corpo, sexualidades, relações de gênero e similares; e a Pluralidade Cultural (Brasil, 1997a, 1997b).Quanto ao racismo, a grande remexida legal foi a LDB ser atu-alizada pelas Leis nº10.639/2003 e nº11.645/2008 para esmiuçar a presença na escola das culturas africanas, afrodescendentes e indí-genas com um viés enraizado na luta contra ele. Depois da 10.639, vieram as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das 114EDUCAÇÃO ANTIRRACISTARelações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Brasil, 2004), as Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais (Brasil, 2006) e o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes citadas anteriormente (Brasil, 2009). Pensando em documentos mais voltados para a Capoeira, vale reforçar que, junto a esse movimento na educação, paralelamente houve o movimento de patrimonialização da Capoeira, que teve dois bens registrados pelo Iphan em 2006 – a Roda e o Ofício de Mestres/as, e anos depois sendo reconhecida como Patrimônio da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educa-ção, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2014. Curiosamente, um documento importante, que fortalece o encontro entre a Capoeirae o racismo, pela cultura e pelo “esporte”, é o Estatuto da Igual-dade Racial (Brasil, 2010). E, mais recentemente, sem qualquer aprofundamento ou associação às questões raciais na educação, a Capoeira é mencionada uma única vez na Base Nacional Comum Curricular, sendo considerada e reduzida a uma “luta brasileira”, dentro da unidade temática “lutas” da EF (Brasil, 2017, p.218).Apesar de alguns poucos destaques em documentos oficiais, ainda é necessário refletir como tem sido o tratamento dado à Ca-poeira em todos esses campos, especialmente na educação e na EF. E é justamente por esse caminho que a força de outros movi-mentos sociais e populares vão ocupando espaço na roda, produ-zindo os enraizamentos emancipatórios24 tão urgentes ainda para quem é de dentro, como para quem é de fora da tradição.24 Expressão usada por Nilma Lino Gomes para caracterizar um trabalho pedagógico aprofundado e engajado em torno do racismo numa palestra proferida em 2012 no Seminário Racismo e antirracismo na Educação Básica do Rio de Janeiro, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, movimentos sociais e culturas, Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)/Sepe. 115BRUNO RODOLFO MARTINSAinda “em ânsia de liberdade”...Os discursos sobre liberdade muitas vezes se perdem em ações pa-radoxais existentes nas diversas rodas em que são pronunciados: seja na EF, seja na escola ou na Capoeira. Mas não há possibilidade alguma da efetivação da/s liberdade/s com racismo, sexismo, ma-chismo, classismo, e um tanto de outras opressões que são ainda reproduzidas por esses três caminhos, intensificadas quando se en-contram numa encruzilhada, como esta que estamos debatendo. O próprio Mestre Pastinha (1968), que pronuncia a expressão de que a criação da Capoeira foi “em ânsia de liberdade”, destaca apenas duas mulheres capoeiristas em seu ilustre livro, Julia Fo-gareiro e Maria Homem, no meio de muitos nomes de homens. E continua sendo senso comum o imaginário de seus praticantes: sempre homens, atléticos, normalmente sem camisas, dando pi-ruetas e pernadas, podendo conter violência, e nem sempre ne-gros (o que talvez pudesse contribuir para uma racialização posi-tiva desse imaginário).Dito isso, a violência de gênero e a visibilidade das mulheres na Capoeira tem sido uma forte investida no seu interior. Mestra Ritinha, por exemplo, passou sua vida na Capoeira sendo estig-matizada e discriminada por ser “mulher, preta, pobre e da pá vi-rada”25, conforme relata Nildes Sena (Zonzon, 2021, p.30). Além do livro organizado por Christine Zonzon (2021), outros engajados na perspectiva de gênero foram publicados recentemente, como o de Paula Foltran (2021), Mônica Beltrão (2021), o coordenado por Franciane Figueiredo (2021) e o organizado por Janja Araújo, Renata Silva e Elizia Ferreira (2022); cabe destacar uma parte do 25 Inclusive, essa expressão nomeia o documentário sobre violência de gênero, dirigido pelo Marias Felipas, ver nas referências Mulheres da pá virada: histórias e trajetórias na capoeira (2019).116EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAlivro de Josilvaldo Oliveira e Luiz Oliveira (2009), um pouco mais de dez anos antes. Há também produções autônomas, como as or-ganizadas por Aiê e Denise Fantini (2019) e por Cristina Olivera e Ana Fagundes (2023). A rainha Nzinga Mbandi começou a ser associada à memória corporal das lutas contracoloniais através do movimento da ginga (Fonseca, 2017). Puma Camillê tomou a van-guarda do movimento LGBTQIAPN+, tendo destaque ao cruzar a Capoeira com o Vogue26.Em meio à pandemia, dois seminários tiveram destaque ao problematizar as questões mais atuais na Capoeira: o Outra roda é possível27, organizado pelo coletivo Marias Felipas, sobre violência de gênero, e o Viva Tradição Viva: nossos saberes vêm de longe28, organizado por mim junto a capoeiristas na academia, preocupa-do com uma formação de professores contra o racismo, atraves-sando a Capoeira e a EF. Todas essas referências teriam a potência de serem estudadas e usadas para reflexão crítica dentro e fora da escola e da EF, muito além da roda da Capoeira.Boa viagem?Nessa roda de debate teórico e engajado em torno da Capoeira e da EF, meu esforço foi o de envolver e demonstrar o quanto esse “encontro” tem de racismo. Não há chance alguma de abaixar ao pé do berimbau e defender que esse “encontro” foi benéfico para a Capoeira, mesmo enxergando isso a partir da fronteira destes dois mundos. Continua sendo um jogo truncado, mas em ambos os lados há pessoas engajadas em produzir saberes enraizados em 26 Ela participou dos dois seminários citados na sequência do texto. Segue sua página: https://pumacamille.com/.27 Ver o site: https://mariasfelipas.com/outra-roda-e-possivel/.28 Conferir em: https://vivatradicaoviva.wixsite.com/inicial.117BRUNO RODOLFO MARTINSpráticas antirracistas, algo que faz “iaiá dar uma volta só” e jogar com dignidade. A primeira lei assinada por Lula, em seu primeiro mandato, a Lei nº10.639, assim como as investidas do então mi-nistro da Cultura Gilberto Gil, em iniciar o processo de registro da Capoeira enquanto Patrimônio Cultural, podem ser consideradas fundamentais para que pudéssemos ter força voltada para uma Educação Antirracista. Não só para “ver” a Capoeira na escola, pois isso já acontece de forma “subalternizada”29, mas para vê-la enraizada na luta contra o racismo e o sistema colonial, durante o ano todo, fazendo parte de um currículo engajado e fortalecendo outros sentidos de cultura negra na escola30. Quanto à Capoeira dentro da EF, os debates con-tinuam em torno de sua apresentação e problematização enquanto “cultura corporal” (Soares et al., 1992), porém bem mais aprofunda-dos e sem a ousadia de querer ocupar o lugar de suas figuras tradi-cionais, ou tratá-la como simples conteúdo de “lutas” dentro da EF.Enquanto Patrimônio Cultural do Brasil e da Humanidade, ela agora deve(ria) pisar na escola por meio de uma educação patri-monial engajada, que, em um nível enraizado, teria o fundamento do notório saber e fortalecimento da presença de mestres e mes-tras tradicionais NA escola. Contudo, os projetos de escola e de EF possuem em comum, e em diferentes momentos históricos, o racismo epistêmico ou epistemicídio. Seguem a lógica racista de que a cultura negra tem valor, desde que praticada – nesse caso, consumida –, pela população abastada e branca. Suas culturas e 29 A visibilidade subalterna é outra expressão de Nilma Lino Gomes em palestra: racismo e antirracismo na Educação Básica do Rio de Janeiro. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). 18 de maio de 2012, que traduz a presença das culturas negras, africanas, indígenas, tradicionais e similares de forma marginal, estereotipada e somente em momentos específicos do ano letivo. 30 Esse debate é realizado por Vitor Barellos (2013) em sua dissertação.118EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAseus saberes não são eleitos como currículo escolar, e as pessoas negras “não” importariam. E, nesse sentido, epistemicídio sempre está acompanhado de genocídio e semiocídio.Contraditoriamente, a escola e a EF poderiam apresentar a Capoeira acolhendo democraticamente a diversidade, algo que em muitas tradições populares, no caso, na própria Capoeira, ainda é difícil devido à existência de tabus machistas, sexistas, racistas, heteronormatistas etc. Nesse sentido, a escola e a EF teriam não só uma bagagem teórica libertária, de dentro e de fora da Capo-eira, como também um tanto de leis e documentos oficiais que poderiam servir para esse acolhimento. Contudo, a escola e a EF continuam reproduzindo ideologicamente setores conservadores da sociedade. Assim como a Capoeira também possui setores ra-dicalizados e conscientes do enfrentamento que deve ser mantido diante do Estado, e de que essas brechas precisam ser ocupadas com um golpe certeiro. Assim como há disputapela escola e pela EF, há disputa por qual Capoeira estará presente na escola. Não é à toa que em alguns lugares ela está na escola plenamente, em outros, só encontra em-pecilhos políticos e pedagógicos. Sabedores disso, ambos os seto-res nessa disputa têm a consciência de que ela é “arma”, e voltada para liberdade, mas que, sendo domesticada, pode virar chibata do sinhô, bíblia do pastor, doutrina sem partido, esporte branco, casa de homens, céu sem arco-íris.Mas, como um Cavalo de Troia, ou mais sapecamente, como o gorro de Exu, a Capoeira continua sendo – ou com a potência de ser – a Comissão de Frente a forçar a abertura do desfile do debate sobre racismo na escola e na EF, capinando terreno para outros saberes corporais subalternizados por ambas.119BRUNO RODOLFO MARTINSReferênciasALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.ARAÚJO, J.; SILVA, R. de L.; FERREIRA, E. C. (org.). Mulheres que gingam: reflexões sobre as relações de gênero na Capoeira. Curitiba: Appris, 2022.BARCELLOS, V. A. 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Vinte anos da Lei nº 10.639 e possibilidades (de)coloniais na área de Linguagens: uma escrevivênciaFabiana LimaMe (re)encontrando com a escrevivência: a razão de ser deste capítuloSempre quis rememorar criticamente o momento em que me de-parei com o neologismo escrevivência pela primeira vez. O ano: 2008, durante um dos períodos mais significativos da minha vida, quando morei na cidade de Salvador para cursar o doutorado no Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Universidade Fede-ral da Bahia (UFBA)1. Naquele momento privilegiado de amplia-ção de horizontes existenciais e profissionais, li maravilhada pela primeira vez o ensaio “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento da minha escrita”. A cada parágrafo me 1 Eu me doutorei no Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) no Ceao/UFBA. Minha tese, intitulada Afrobetizar: análise das relações étnico-raciais em cinco livros didáticos de literatura para o ensino médio, foi defendida no ano de 2011.130EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA(re)encontrava com as memórias, com a escrita descolonizadora2, com os afetos de Conceição Evaristo. Ao fim do texto, a palavra mágica: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (Evaristo, 2007, p.21, grifo nosso). Ter vivido até aquele momento para reivindicar a escrita em primeira pessoa fez todo sentido, porque, mesmonão sendo uma literata de mão cheia como Conceição, as tradições de textos acadêmicos a mim apresentadas, desde a graduação na Faculdade de Letras, nunca corresponderam às memórias, às palavras, aos referenciais da fa-mília a qual pertenço, de origem negro-baiana, fixada no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. E não inicio à toa este capítulo para trazer reflexão crítica sobre possibilidades curriculares e pedagógicas decoloniais na área de Linguagens, sobretudo no que diz respeito à educação literária, a partir da escrevivência de uma educadora, pesquisa-dora e acadêmica negra. Decorridos 20 anos de promulgação da Lei nº 10.639/033, torna-se imperioso discutir os limites de sua 2 Os termos “decolonial”, “decolonialidade”, “descolonial”, “pós-colonial”, “descolonização” e seus derivados, apesar das variações semânticas entre eles, congregam epistemologicamente uma disposição de enfrentamento das relações coloniais de poder que constituem o capitalis-mo moderno de modelo ocidental-europeu desde o séculoXVI, sustentadas pela classificação e domínio étnico-racial das sociedades colonizadas, bem como pela criação de uma subjetivi-dade responsável por formalizar um modo de produzir conhecimento de orientação euro-cêntrica, que se hegemoniza como a única possível, tornando-se, portanto, uma perspectiva cognitiva de domínio e reprodução da colonialidade.3 Embora a Lei nº10.639/03 tenha sido substituída pela Lei nº11.645/08, incluindo na Lei de Direitrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) a obrigatoriedade também do ensino da história e cultura dos povos indígenas, utilizo a legislação de 2003 como marco da virada paradigmática no sistema educacional brasileiro, a partir da agenda histórica de luta política do movimento negro no campo da educação. Também é importante lembrar que as Diretri-zes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004), criadas um ano após a promulga-ção da lei, consideram basilar o ensino também de história e culturas indígenas. Isso se pode constatar por meio do fragmento a seguir, que esmiuça as bases filosóficas e pedagógicas das diretrizes curriculares através do princípio da Consciência Política e Histórica da Diversidade: 131FABIANA LIMAimplementação e as possibilidades abertas para que se pense de-terminada perspectiva educacional compromissada em devassar o jugo colonial, o racismo epistêmico e o epistemicídio4. E aqui vale esmiuçar por que o conceito de escrevivência é mui-to mais do que uma escrita em primeira pessoa, ao traduzir determi-nada tradição literária menosprezada por nossas elites intelectuais eurocêntricas. Na medida em que o racismo soterra a subjetividade e os saberes da pessoa negra, resumindo-os, no que diz respeito à nossa tradição literária e discursiva hegemônica, a um puxadinho do protagonismo de personagens brancos, a escritora Conceição Evaristo (2007), ao nomear uma forma de fazer literatura a partir do lastro da memória de mulheres negras, subverte e afirma refe-renciais que descolonizam determinada cultura letrada brasileira, comprometida com a reprodução cognitiva da colonialidade. Enegrecendo a questão, em ensaio memorial que narra a consciência política da sua escrita ficcional e poética, Conceição Evaristo (2007) assume a primeira pessoa como dicção emanci-patória no mundo, que acaba por transformar a escrita em uma “à superação da indiferença, injustiça e desqualificação com que os negros, os povos indígenas e também as classes populares às quais os negros, no geral, pertencem, são comumente tratados” (Brasil, 2013, p.484). Dessa forma, neste capítulo enfatizarei a importância, em todo o sistema educacional brasileiro, do ensino da história e cultura africana e afro-brasi-leira em diálogo com o ensino da história e cultura dos povos indígenas como estratégia de enfrentamento do racismo epistêmico. Essa referência à importância da inclusão dos saberes indígenas em todo o sistema educacional brasileiro se harmoniza à reivindicação histórica dos povos originários por escolas indígenas. 4 O epistemicídio, na formulação teórica de Boaventura de Sousa Santos (2000), inicia, nas nações modernas, com o projeto econômico de expansão territorial europeu, mas se estende para muito além dele, enquanto marca perversa de colonialidade. No Brasil, o sequestro de formas de conhecimento não ocidentais tem representado não só o menosprezo a tradições étnicas específicas, mas sobretudo o próprio apagamento dos corpos de indivíduos que fazem parte desses grupos. Sueli Carneiro (2005), em estudo filosófico sobre a construção do “outro” ocidental no campo da educação, pontua que o epistemicídio fere de morte os corpos negros na sociedade brasileira, porque produz indigência cultural, ao desqualificá-los enquanto sujeitos cognoscentes. 132EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAextensão do corpo-memória da mulher negra. Dessa forma, o “eu”, no caso da memória de mulheres negras, jamais pode ser lido como a expressão de um corpo individualizado. Ao contrário, em diálogo tenso com determinada lógica colonial que subalterniza o corpo-memória negro e feminino, esse “eu” se coletiviza ao se narrar, pois partilha experiência de vida das mulheres negras em uma sociedade de mentalidade colonial, racista e sexista. Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma para outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de mulheres! Fa-lar e ouvir entre nós era talvez a única defesa, o único remé-dio que possuíamos. Venho de uma família em que as mulhe-res, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista, primeira a dos patrões, depois a dos homens seus familiares, raramente se permitiam fragilizar. Com ‘cabeça’ da família, elas construíam um mundo próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e, mormente, para apoiá-los depois. Talvez por isso tantas personagens femini-nas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto so-bre isto, não afirmo (Evaristo, 2007, p.20).O questionamento da escritora coletiviza saberes criados a par-tir de um corpo-memória de muitas vozes, muitas mulheres, por-tanto também de uma escrita oralizada e coletiva, em tensão tec-nológica e política com a cultura letrada, autoral e individualista da lógica ocidental. Conceição, muito mais do que criar um mito de origem para o próprio fazer literário, batiza uma pedagogia afroplu-riversal5 que extrapola os limites da literatura e ecoa em diapasão no pensamento negro brasileiro. 5 Pluriversalidade epistêmica é utilizada neste capítulo, em diálogo com as reflexões teórico-metodológicas de Walter Mignolo (2006), quando desafia a geopolítica do conheci-mento eurocêntrico a partir da hegemonia da racionalidade científica através da proposição de outro paradigma para a produção de saberes que contemple formas de conhecimento 133FABIANA LIMANesse sentido, tenho me dedicado a compreender critica-mente, tanto a partir da prática pretérita no ensino de Língua Portuguesa na Escola Básica quanto hoje em cursos de formação docente na universidade onde leciono, o que tenho chamado de Pedagogias da Escrevivência, ou seja, formas de ensinar e apren-der construídas a contrapelo da lógica monoepistêmica e mono-cultural do ocidente, criadas a partir do lastro da memória social e racial de seus criadores (mestres de comunidades tradicionais, intelectuais de movimentos negros e indígenas, líderes ativistas, comunidades negrodescendentes e indígenas), comprometidos com as memórias africanas e indígenas no Brasil enquanto con-tranarrativas (intelectuais, epistêmicas, estéticas, performáticas) às relações racistas e sexistas de poder. Nesse sentido, a razão de ser deste capítulo é trazer reflexão crítica, a partir da minha trajetória docente e intelectual,acerca de possibilidades pedagógicas e curriculares da educação literá-ria na Escola Básica, transcorridos 20 anos da promulgação da Lei nº10.639/03. Para tanto, passarei por três significativos mo-mentos na minha trajetória profissional, a saber: a atuação na Educação Básica como professora de Língua Portuguesa; a pes-quisa de doutorado sobre discurso racista em materiais didáticos de Língua Portuguesa; e a atuação docente em cursos de licencia-turas interdisciplinares.cuja racionalidade tem sido historicamente negada em nome da ciência; e Renato Noguera (2012), quando empenhado em (re)pensar a filosofia africana através de abordagem que ele nomeia afroperspectivista, concebe a educação como um exercício policêntrico, intercultural e perspectivista. Guardadas as especificidades de cada autor, suas construções teórico-críticas dialogam com discussões do Sul global que relacionam (de)colonialidade (do poder, do saber, do ser) e educação. 134EDUCAÇÃO ANTIRRACISTADa experiência dupla no Colégio Pedro II à afrobetização na tese de doutoradoDe 10 para 11 anos de idade, mais precisamente no ano de 1984, meio a contragosto, ingressei na antiga quinta série do Colégio Pe-dro II (CPII)6, escola pública federal, no bairro do Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro. Amedrontada na fila de alunos de um colé-gio tão grande, diferente em tudo da escola particular de onde eu tinha vindo, troquei olhares com outra menina negra, minha ami-ga até hoje por sinal. Identificação imediata. Nossas aventuras e desventuras de adolescência dentro daquela escola foram perpas-sadas pela percepção precoce de que éramos inferiores em tudo ou quase tudo: nos grupos de amigas e amigos, na preterição amoro-sa, nas escolhas que significavam de alguma forma distinção, no aproveitamento cognitivo, porque se minha amiga seguia a norma de que estudantes negras e negros viviam à beira da jubilação, de-vido às reprovações; já eu, às custas de perseguir uma perfeição autoimposta, era considerada a exceção, por ser uma adolescen-te negra que passava direto. As marcas do racismo institucional daquela escola de história colonial introjetaram em nós, desde muito cedo, silenciamento acerca de nossa condição racial. Por outro lado, foi dentro dessa mesma instituição que eu sol-tei a voz pela primeira vez para falar publicamente sobre uma série de questões de fato relevantes para mim. Ano de 1988, 1ºano do antigo científico (hoje ensino médio), aula de História com 6 O CPII é uma tradicional instituição de ensino público federal, criada em 1837, localizada no estado do Rio de Janeiro. Faz parte da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculada à Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação. É o terceiro mais antigo colégio em atividade no país, depois do Ginásio Pernambu-cano e do Atheneu Norte-Riograndense. A escola foi criada em homenagem ao seu patrono, o imperador do Brasil à época, Pedro II. Essa monumental escola possui vários campi entre bairros do Rio de Janeiro e Duque de Caxias (cidade da Baixada Fluminense). 135FABIANA LIMAprofessor Ricardo: a atividade daquele dia consistia em debater-mos sobre a abolição da escravização e sobre o racismo no Brasil, quando completava 100 anos de Abolição da Escravatura. A roda estava formada… Todos os brancos ou não negros entabulando al-tos discursos sobre o tema. Eu e mais duas amigas de pele escura ficamos encolhidas nas carteiras, querendo mesmo que um bura-co abrisse para a gente entrar. Em meio àquela exposição de nos-sas fragilidades, passado o medo inicial, senti raiva, muita raiva por falarem de mim, por mim, sem que escutassem a minha dor, o meu ponto de vista, a minha cólera talvez. A fala de uma amiga bem branquinha da sala foi o estopim para que a minha voz tre-mida se levantasse alto, se levantasse para, a partir de então, se fortalecer. Só lembro que comecei falando:acho um absurdo todos vocês que disseram não haver racis-mo no Brasil, pelo menos no Rio de Janeiro, porque todos vão à praia querendo pegar um bronze. Uma coisa é o bronzeado de verão, outra bem diferente é acordar e enfrentar o mundo com a pele que eu tenho sem precisar tomar sol [...].A partir daí, acredito, a voz destremeu, mas não tenho mais ideia do que disse. Só sei que terminei a aula me sentindo livre e forte. Parece que a notícia se espalhou pelo segundo andar da es-cola, porque toda a violência racial sofrida, principalmente pelas adolescentes negras daquele corredor, chegava a mim para que in-tercedesse de alguma forma. Lembro-me de uma amiga que mora-va na favela do Guararapes, no bairro do Cosme Velho7, ter entrado na minha sala choramingando e dizendo: “Fabiana, me chamaram de neguinha”. Eu nem esperei ela terminar: “E você é o quê? Você é o quê, Flávia? Vai voltar lá e dizer pra esse menino que você é neguinha 7 Cosme Velho é um bairro de elite da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.136EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAsim, com muito orgulho”. Era assim que vivíamos: doloridas, em meio às violências diárias, sem ter com quem contar diretamente. Digo diretamente, porque indiretamente contávamos com al-guns professores, como esse Ricardo, de História; Fernando Décio, de Filosofia; Helena Godoy, de Português, que lembro, por suas ações político-pedagógicas em sala de aula, compreendiam as pro-fundas desigualdades reproduzidas dentro do colégio. Particular-mente, contei com a minha querida professora Guaciara, também uma mulher negra, que foi a minha inspiração nos dois últimos anos de CPII. Na verdade, ela é uma inspiração profissional até hoje, não só pela criatividade na composição das aulas de Língua Portuguesa, Produção Textual (expressão aprendida com ela, que fazia questão de deixar o termo “Redação” de lado) e Literatura, mas sobretudo pelo compromisso de discutir e de criar estratégias de transformação social a partir de uma relação produtiva com o conhecimento. Com ela aprendi a reescrever um texto, conscienti-zando-me das mudanças que precisam ser feitas para que ele atin-ja o objetivo desejado por mim enquanto autora. Com ela aprendi que texto literário bom é aquele que nos recompõe, tirando-nos do lugar conhecido. Com ela, tenho certeza, aprendi a ler, com toda a complexidade que essa prática implica, e a me arriscar na aventu-ra emancipatória da escrita. Ter voltado, como professora, para esta mesma instituição tre-ze anos depois de ter saído na condição de estudante foi um pro-cesso no mínimo contraditório, na medida em que pude me cons-cientizar das disputas de poder dentro do colégio e, infelizmente, da presença de grupos de professores altamente elitistas e racistas. Em síntese, o quadro encontrado em meados de 2003, quando ingressei enquanto professora no CPII, foi marcado pelo desinte-resse por parte dos meus colegas de departamento em estabelecer 137FABIANA LIMAdiálogo produtivo, nas aulas de Língua Portuguesa, com textuali-dades negras do Brasil e de países da diáspora africana, bem como em investigar as desigualdades sociais ocasionadas pelo racismo. Lembro-me, nos primeiros colegiados de que participei, de a gran-de maioria dos meus colegas professores colocarem-se contrários à Lei nº10.639 recém-promulgada, vista como uma imposição go-vernamental marcada pelo que chamavam de um autoritarismo de esquerda. Tendo começado a participar de coletivos do movi-mento negro durante a minha graduação em Letras8, todo aquele discurso parecia-me extemporâneo, na medida em que meus co-legas de trabalho ignoravam totalmente a agenda de luta políti-ca dos movimentos sociais negros no Brasil, incluindo sobretudo reivindicações de uma educação que contemplasse a história e os conhecimentos da população africana, dentro e fora do Brasil. Tendo em vista esse contexto dramático, no intuito de contri-buir para que o CPII ampliasse sua perspectiva curricular, dialogan-do com realidades sociais da populaçãonegra no Brasil, desenvol-vi, em 2005, juntamente com um professor de Geografia, o projeto pedagógico Afrobetizando, cujo principal eixo era a reflexão sobre o racismo, a partir da história e cultura da população negra, em perspectiva metodológica interdisciplinar, perpassando pela Histó-ria, Geografia, Literatura, Linguística, entre outras áreas. Interessante observar em retrospecto que àquela época eu jamais imaginaria trabalhar em cursos interdisciplinares. No en-tanto, minha prática já era interdisciplinar, na medida em que 8 Embora desde os 15 anos de idade tenha participado de grupos culturais de dança afro--brasileira na cidade do Rio de Janeiro (RJ), o momento significativo de aprofundamento crítico sobre as relações raciais aconteceu durante a minha graduação, com a participação no I Seminário Nacional de Estudantes Universitários Negros, “A universidade que o povo negro quer”, que aconteceu entre 3 a 7 de setembro de 1993 na UFBA. A articulação de estudantes universitários negros da cidade do RJ, no entanto, aconteceu desde os últimos meses de 1992, através de inúmeras reuniões preparatórias para a ida ao Seminário em Salvador. 138EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAa complexidade do racismo demandava – e demanda até hoje – ações político-pedagógicas que ultrapassavam o ensino estrito da Língua Portuguesa, enquanto estudos de Gramática, Literatura e Produção Textual. Conforme colocam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultural Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004), inserir na organização curricular da escola a história, as memórias, as subjetividades, as artes e as ciências das populações negras e indígenas requer novas metodologias para a organização do trabalho escolar, que implicam a articulação de processos edu-cativos na escola com saberes historiográficos, sociais, econômi-cos, pedagógicos e políticos produzidos pelos movimentos sociais e pelas comunidades negras. Ou seja, a perspectiva educacional requerida pelas Diretrizes é de natureza aberta aos múltiplos ter-ritórios de saberes e à interdisciplinaridade.Voltando à minha trajetória de estudante à professora no CPII, o menosprezo às epistemologias e cosmologias africanas, afro--brasileiras e indígenas naquela instituição federal de ensino par-ticularmente e no sistema educacional brasileiro como um todo, impulsionou-me ao desenvolvimento de um projeto de pesquisa no doutorado que aliou a teoria à minha prática de professora de Literaturas de Língua Portuguesa. Dessa forma, me detive ao cam-po literário brasileiro, a partir da análise do modelo livresco e do mercado de livros didáticos de Literatura, com o intuito de desnu-dar determinada perspectiva de educação literária que pouco se modificou do século XIX até o início do século XXI. A tese Afro-betizar: análise das relações étnico-raciais em cinco livros didáticos de literatura para o ensino médio (Peixoto, 2011) se propôs desnu-dar a lógica colonizadora de restringir os espaços educacionais institucionalizados às tradições euro-ocidentais, dando forma a 139FABIANA LIMAmateriais didáticos produzidos mercadologicamente para o ensino público brasileiro, como parte de uma política pública educacio-nal (Programa Nacional do Livro Didático, PNLD), que acabava relegando os saberes não europeus ao espaço da marginalização, à perspectiva do exotismo.Em linhas gerais, a discussão principal da tese implicou a de-monstração do fechamento à época, em manuais didáticos de edu-cação literária (Catálogo do PNLD de 2006), para a reflexão sobre o racismo e as relações étnico-raciais a partir da perspectiva do ne-gro enquanto sujeito histórico do próprio discurso. A análise feita conduziu para o desenvolvimento de metodologias aplicáveis a um ensino de Literatura que, de fato, promova uma afrobetização, com-preendida não como a monopolização da temática racial na educa-ção literária da Escola Básica, mas como um encaminhamento em direção à pluralidade, dentro do qual diversas escritas, memórias orais e corporalidades subalternizadas ganhem espaço curricular nos materiais didáticos e, consequentemente, nas salas de aula. Essa pesquisa demonstrou o quanto o silenciamento da escri-ta literária afro-brasileira em manuais de Literatura acabou ad-quirindo o sentido da invisibilização de um grupo étnico-racial in-teiro, promovendo a reprodução do racismo na esfera da educação institucionalizada. A Literatura, por ser um artefato do humano como todos os outros, participa de jogos de poder dentro da so-ciedade. Portanto, não fugir à esfera política da produção literá-ria parece ser o caminho teórico-metodológico mais interessante para produzir um contato crítico do aluno com a Literatura e com o mundo social, proporcionando-lhe visão ampla da diversidade étnico-racial do Brasil e compreensão profunda dos limites indivi-duais e coletivos que o racismo instaura. 140EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAAfastada da escola desde 2007, durante o doutoramento re-alizado na cidade de Salvador, ao voltar, no final de 2010, perce-bi que aquela instituição ainda apresentava dificuldades para se aproximar de práticas pedagógicas para uma educação das rela-ções étnico-raciais que desse conta de discutir não só a produção de saberes africanos e indígenas, em diversas áreas do conheci-mento, mas também o racismo enquanto categoria estrutural de hierarquização social e operador ideológico delimitador de espa-ços e atitudes de exclusão. Naquele momento, nem professores nem direção geral (hoje reitoria) assumiram a importância de uma mudança curricular radical, que colocasse por terra a pers-pectiva marcadamente eurocêntrica de seleção e sistematização do conhecimento. Particularmente, quando voltei para a sala de aula, em abril de 2011, continuei fazendo o meu trabalho de levar o estudante da Escola Básica a dialogar com textualidades e cor-poreidades negras, infelizmente, nas brechas do currículo oficial, quase sempre de formato fixo e linear, a partir das possibilidades de parceria com colegas professores que comungavam da mesma perspectiva educacional. No início do ano letivo de 2014, tanto a composição do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/CPII) quanto a aula inaugural com o professor Kabengele Munanga (2004)9 indicavam mudanças sutis, porém já significativas, com o objetivo de promover políticas para a diferença naquela instituição. Em poucos meses, uma série de atividades, projetos pedagógicos, eventos políticos de luta contra 9 Desde 1980, Kabengele Munanga, nascido na atual República Democrática do Congo (anti-go Zaire), ingressou na carreira docente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e se aposentou em 2012, como professor titular do Departamento de Antropologia. Continua atuante como professor sênior na faculdade, em atividades do Centro de Estudos Africanos (CEA) e integra o Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Entre 2014 e 2020, foi professor visitante sênior da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).141FABIANA LIMAo racismo no CPII começaram a surgir aos tantos, sobretudo estu-dantes negras e negros passaram a levantar a voz quando eram cha-mados de macacos ou impedidos de entrar no colégio com fios de contas do candomblé ou mesmo quando eram obrigados a ficar ca-lados ao escutar piadas racistas e sexistas dos próprios professores. Na trilha do meu caminho de desconstrução curricular e do de-senvolvimento de práticas pedagógicas descolonizadoras, a pedido do estudante Vinícius Garcia, desenvolvi também, a partir do ano letivo de 2014, o projeto pedagógico “Fórum Permanente de Discus-são das Relações Étnico-Raciais”. Deixo com esse participante do Fórum no campus Engenho Novo II as impressões sobre o projeto:Durante o último trimestre de 2014, colocamos em prática um projeto novo, cujo objetivo principal era(Bahia) e a Companhia Teatral Zumbi dos Palmares (Goiás), asseverando que tais coletivos são promotores de um didatismo antirracista.Seguindo o fluxo, temos o capítulo “O negro no canto lírico bra-sileiro”, da professora e cantora lírica Irma Ferreira, no qual vocali-za em tom maior a invisibilidade de vozes e corpos negros no domí-nio da música de concerto no Brasil, mesmo que a recente revisão 18EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAhistórica sobre o assunto ateste que, desde o século XVII, a presença negra era constante e efetiva, mas clivada pelo racismo colonial que a impedia de aparecer em cena, seja cantando das coxias, camu-flando seus traços fenotípicos com cosméticos ou não divulgando seus nomes nos programas dos concertos, infringindo as mais he-diondas humilhações e subjugações aos/às artistas negros/as.Em contraposição, a autora nos apresenta diversas perso-nalidades negras que alcançaram sucesso no canto lírico desde o século XVIII até os dias atuais, inclusive internacionalmente, como a mineira Joaquina Maria da Conceição Lapa (17??-?), a La-pinha, as cariocas Camila Maria da Conceição (1873-1936), Zaíra de Oliveira (1891-1952) e Maria de Aparecida Marques (1936-2017), entre outros/as em uma extensa lista que chega até os dias atuais.Lissandra Patrícia Conceição dos Santos, professora, bailarina e psicopedagoga, traz em seu capítulo “Corpo e dança na infância: práticas afrorreferenciais no ensino”, a necessidade e importância da valorização dos conhecimentos artísticos-filosóficos de África e suas diásporas, através do corpo e do movimento, contribuindo para a construção identitária de estudantes do Ensino Fundamen-tal público, negros/as em sua avassaladora maioria.A autora traz à baila outra faceta do racismo: a não aceitação de suas ancestralidades africanas e afro-brasileiras por parte desses/as alunos/as, reforçada pela falta de acesso ao conhecimento afrorre-ferenciado e à ausência de conteúdos étnico-raciais nos livros di-dáticos, mesmo após a aprovação da Lei nº10.639/03. Em busca de uma postura identitária e antirracista é que a dança vem fazer bai-lar as mentalidades no ambiente escolar, se afrorreferenciando em volteios e espirais que turvam o racismo incrustrado na sociedade e, sobretudo, numa perspectiva antropófaga e contracolonial.19ERICO JOSÉ SOUZA DE OLIVEIRAEm “O racismo ao pé do berimbau: ou quando a Educação Fí-sica entra na roda de Capoeira”, do capoeirista, angoleiro, macum-beiro, professor de Educação Física e mestre em Relações Étnico--Raciais, Bruno Rodolfo Martins, a relação entre a universidade e cultura negra traz uma problemática ontológica, exposta através dos cursos de Educação Física espalhados pelo Brasil e a carreira de professor da área. Para o autor, o encontro entre essas duas epistemes sempre foi prenhe de racismo e embranquecimento.Traçando uma linha do tempo entre a perseguição oficial, ins-crita no primeiro Código Penal da República até a ideia de utili-zação da capoeira como “ginástica ou esporte nacional”, através de um pensamento branco e militarizado, os processos de apro-priação cultural9, de eugenismo e de esfacelamento das heranças africanas e afro-brasileiras são flagrantes.A análise crítica do autor em questão é cirúrgica e levanta questões fundantes para todas as áreas que transitam entre suas epistemologias hegemônicas e as práticas culturais africanas e afro-brasileiras, como as Ciências Sociais e a Arte em geral, tanto no universo acadêmico quanto no escolar. Demonstrando a fal-ta de abordagem étnico-racial dessas questões em pesquisas de mestrado e doutorado, o autor corrobora a posição de que, salvo poucas exceções, a conduta do mundo universitário em relação às culturas negras é muito mais de reforço e perpetuação do racismo que de um olhar questionador e antirracista.Em “Vinte anos da Lei nº10.639 e possibilidades (de)coloniais na área de Linguagens: uma escrevivência”, a professora Fabiana Lima, por meio desse potente conceito forjado pela grande intelec-tual Conceição Evaristo, tece sua narrativa pessoal e profissional 9 WILLIAM, R. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.20EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAem diálogo com uma reflexão crítica sobre o pensamento curri-cular da área de Linguagens, sobretudo da educação literária, em sintonia com uma “[...] perspectiva educacional compromissada em devassar o jugo colonial, o racismo epistêmico, o epistemicídio [...]”, como afirma no capítulo.Seu “diálogo tenso” entre a lógica colonial e a “subalternização de seu corpo-memória negro e feminino”, assim como o de Concei-ção Evaristo, circunscreve uma trama coletiva enquanto escrita de si, oralidade e oralitura10 na sua trajetória ainda enquanto aluna do Colégio Pedro II (Rio de Janeiro), como professora de Língua Portuguesa do Ensino Básico e, atualmente, em cursos de forma-ção docente na universidade, revelando as sistemáticas estraté-gias do racismo no âmbito escolar, sobretudo, no corpo docente alheio e avesso ao cumprimento da Lei em questão.Tal menosprezo às temáticas afrorreferenciadas por parte dos/as professores/as a insuflou a realizar um doutorado sobre o mercado de livros didáticos de literatura para o Ensino Médio, constatando a lógica colonizadora e a invisibilidade de conteúdos étnico-raciais relegados à marginalização e ao exotismo. Em sua volta como doutora ao ambiente de ensino, a autora se engajou em diversos projetos de pesquisa e extensão para o diálogo com textualidades e corporeidades negras, mas sempre às margens do currículo oficial.Já enquanto docente da Universidade Federal do Sul da Bahia, compreendeu que, para se combater questões estruturais como o racismo epistêmico, é necessário atuar na estrutura das instituições, isto é, na base do sistema curricular, que é o eixo central do pensamento político-pedagógico escolar, para que se 10 MARTINS, L. M. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.21ERICO JOSÉ SOUZA DE OLIVEIRApossa vislumbrar uma transformação efetiva da cultura colonial em busca de uma prática antirracista e emancipatória.Continuando na área das Linguagens, a professora de Inglês, pesquisadora e estudiosa das questões étnico-raciais, Dinalva Marreiro Pereira Todão, apresenta o capítulo “O perigo da hege-monia no ensino de Língua Inglesa (EUA/Europa): ensinando o Inglês a partir da perspectiva afrorreferenciada no chão da sala de aula”, no qual polemiza o alicerce de colonialidade impresso no ensino da Língua Inglesa.A autora demonstra que é possível um ensino da Língua In-glesa pluriversal, através de propostas pedagógicas positivas e in-clusivas com relação à presença das culturas e histórias africanas em suas múltiplas linguagens, articulando saberes e fazeres deco-loniais, fortalecendo a autoestima de estudantes negros/as e erra-dicando as práticas racistas contidas na suposta superioridade das nações europeias e estadunidense em contraposição à subalterni-zação de países africanos de Língua Inglesa oficial. Demonstrando de forma prática como, pedagogicamente, se pode redimensionar os lugares comuns sobre xenofobismo, racis-mo e preconceito linguístico, a autora apresenta textos, filmes, jo-gos africanos e livros que desbancam as construções imagéticas da superioridade branca, fazendo da sala de aula um lugar de res-ponsabilidade e intencionalidade antirracistas, por meio de uma abordagem lúdica.Entrando na área da Matemática, o professor e pesquisador Jeferson dos Santos Todão nos brinda com “A história da Matemá-tica e a Lei nº10.639/03”, trazendo um histórico milenar da Áfri-ca como berço da Matemática, da Astronomia, da Engenharia, da Filosofia e de outros ramos da ciência e do conhecimento huma-no, além de ser o continente que mais contribuiu para a formação 22EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAsocial e cultural do Brasil, que possui a maior população negra do mundo depoistrazer ao Campus um debate acerca das relações étnico-raciais. Com o Fórum Permanente de Discussão das Relações Étnico-Raciais – esse é o nome do projeto – conseguimos mobilizar alguns alunos e professores a discutir e pensar sobre a questão. Através de encontros semanais, esses se reuniam para uma espécie de ‘roda de conversa’, na qual, em cada sessão, eram discutidos temas relacionados ao assunto, com o auxílio de materiais didáticos, tais como textos, vídeos, fotografias e depoimen-tos. A interação entre participantes era dada através de uma abordagem dinâmica, contrastante àquela usada em sala de aula: não havia professor, nem alunos, e sim pessoas trocando conhecimentos e experiências.[...]O projeto nasceu da necessidade de se discutir as questões que envolvem a divisão da nossa sociedade em etnias e raças no âmbito escolar. Em um país tão diversificado como o Brasil, onde a miscigenação é, provavelmente, o fator mais caracte-rístico da formação de sua população, era de se esperar que esse fosse um exemplo louvável no que diz respeito à demo-cracia racial. No entanto, é preciso reconhecer que a realidade 142EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAainda dista muito do ideal e que continua a interferir direta e indiretamente nas mais diversas organizações que a com-põem, inclusive na escola. Apesar de já se ter tido conquis-tas significativas ao longo dos últimos anos, como a política afirmativa de cotas raciais, o caráter da educação brasileira persiste profundamente etnocêntrico, excluindo as mais di-versas contribuições ao conhecimento, proporcionadas por povos não-europeus. Como resultado, a formação educacional proporcionada pelo Colégio Pedro II ainda segue esses parâ-metros que transcendem séculos de omissão da colaboração desses povos à formação da nossa nação e do mundo. Con-sequentemente, muitos alunos ainda não são totalmente con-templados pelo ensino oferecido (Garcia, 2014).10O projeto do Fórum pode ser considerado um grande avanço, juntamente com outras iniciativas lideradas pelo Neab/CPII, na medida em que esses conhecimentos passaram a circular dentro da escola, mesmo não sendo considerados conhecimentos dignos de fazerem parte da organização curricular obrigatória. Saí dessa instituição escolar de história colonial em abril de 2015, no entan-to o projeto continua até hoje, protagonizado por estudantes e por novos professores, que têm coordenado as atividades político-pe-dagógicas desse espaço emancipatório e aberto de discussão das relações étnico-raciais naquela instituição escolar.A experiência de atuar nos projetos pedagógicos do CPII, a partir de perspectiva educacional aberta e interdisciplinar, bem como a reflexão teórico-metodológica desenvolvida na pesqui-sa de doutorado, conforme apresentado, foram cruciais para a minha atuação em cursos de Licenciaturas Interdisciplinares (LI) na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), mode-lo novo de formação docente, que tem me possibilitado repensar 10 Esta citação é composta por fragmentos da avaliação escrita do estudante Vinicius Gar-cia, entregue a mim no final do ano letivo de 2014. 143FABIANA LIMAradicalmente princípios para um currículo antirracista e que pro-mova a pluriepistemicidade11, tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior.Repensando o currículo enquanto encruzilhada de saberes: princípios antirracistasReposicionar-me enquanto docente e intelectual negra por meio da atuação profissional na UFSB desde 2015, me fez compreender, na prática, que desenvolver políticas de ações afirmativas e Edu-cação Antirracista implica necessariamente mudança na concep-ção curricular. No caso da universidade onde leciono, o currículo é compreendido não como um percurso linear e fechado, em que determinados conhecimentos são organizados sequencialmente em “grade” curricular, construída a partir do chamado pré-re-quisito, lógica que organiza o saber em uma sequência formativa única. Diferente dessa perspectiva curricular, a UFSB12 tem me ensinado que a seleção de percursos pluriepistêmicos a serem tri-lhados pelos/as estudantes, de acordo com os interesses existen-ciais, sociais, econômicos e profissionais de cada um/a deles/as, 11 O que nomeio de pluriepistemicidade implica, na perspectiva de Nilma Lino Gomes (2011, 2012, 2017), Walter Mignolo (2006), entre outras/os que têm pensado a decolonialidade no campo da educação, praticar a desierarquização de distintos saberes, cosmologias, episte-mologias, pedagogias, possibilitando perspectiva curricular e prática que tensione com o eurocentrismo, abrindo-se a outras dimensões epistêmicas, historicamente silenciadas. 12 Tendo iniciado com turmas de estudantes em 2014, o planejamento curricular institucio-nal nos primeiros quatro anos da UFSB, para todos os cursos de entrada à época (Bacharela-dos e Licenciaturas Interdisciplinares), evitou ao máximo os pré-requisitos, respeitadas as es-pecificidades de cada área. Desde 2018, a UFSB vem passando por uma série de reformulações institucionais, incluindo (re)organização curricular de vários cursos. Os cursos de graduação e os programas de pós-graduação em que eu atuo diretamente (Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais; Licenciatura Interdisciplinar em Artes; Especialização em Pedagogia das Artes; e o Programa de Pós-Graduação em Artes) têm optado por manter a maior parte da organização curricular aberta, flexível, criando possibilidades aos estudantes para diferentes percursos formativos. 144EDUCAÇÃO ANTIRRACISTApermite deslocamentos (de)coloniais nos percursos formativos, que se abrem como encruzilhadas de saberes. Ou seja, a experi-ência docente que tenho tido nos últimos anos, em perspectiva curricular aberta, flexível, territorializada, interdisciplinar e (de)colonial tem ampliado a minha visão sobre o que pode vir a ser a chamada descolonização do currículo.Na rede de mudança paradigmática da organização curricu-lar na UFSB, possui papel central a perspectiva interdisciplinar, tanto no que diz respeito aos conteúdos da maioria dos compo-nentes curriculares quanto ao percurso formativo que passa por diferentes áreas do conhecimento, a partir das quais cada estu-dante trilha caminhos de produção de saberes que lhes fazem sen-tido. Dentro de tal direcionamento, torna-se importante ressaltar que a noção de interdisciplinaridade é tomada enquanto práxis emancipatória, ou seja, não simplesmente abordada no âmbito da teoria, incorporando variadas concepções de intelectuais que se debruçaram sobre esse conceito, mas sobretudo compreendendo--a enquanto opção metodológica do ensinar, condição mesmo de ensino-aprendizagem para o campo da docência (Thiesen, 2008). Faz parte também dessa organização curricular o esforço de dialogar com os territórios de saberes onde a universidade está inserida, conjugando pedagogicamente diferentes perspectivas epistêmicas, a partir do que podemos chamar de pedagogias do encontro, porque negrorreferenciadas, territorializadas, constru-ídas sob o signo do afeto como articuladoras do fazer pedagógico e como potencializadoras da transformação social. Ou seja, os sa-beres dos territórios onde a universidade se insere se conjugam aos saberes tradicionalmente acadêmicos, num esforço de diálogo epistemológico descolonizador. 145FABIANA LIMAÉ nesse contexto de encruzilhada de saberes dos cursos onde leciono que tenho ministrado componentes curriculares (CC) comprometidos tanto com epistomologias africanas quanto com uma perspectiva educacional antirracista, antissexista e crítica com relação às diferenças. Dessa, forma ter participado da pro-posição ou ministrado CC, tais como Educação e Relações Étnico--Raciais; Estéticas Negrodescendentes; Estéticas dos Povos Origi-nários das Américas; África, Diáspora e Culturas Afro-Brasileiras; Movimentos artísticos e linguísticos dos povos pré-colombianos e diaspóricos nas Américas; Corporalidades negrodescentesno Bra-sil; Artes da grafia: escrevivências, inscrições de si e do outro; nas Licenciaturas Interdisciplinares em Artes e em Ciências Huma-nas e Sociais, tem potencializado a perspectiva de que a Educação Antirracista não deve estar relegada às margens de uma arquite-tura curricular eurocentrada. Ao contrário, deve compor um pla-nejamento de currículo que seja, na superfície e no fundo, crítico ao eurocentrismo que tem caracterizado a educação brasileira institucional. Dessa forma, a perspectiva decolonial da produção de saberes e práticas não se institui como um mero adendo a um currículo de direcionamento eurocêntrico, mas como parte de um todo que, por escolha teórico-metodológica, rompe com perspec-tiva educacional de direcionamento único, linear, monocultural, em uma palavra, epistemicida. Dessa forma, articulando a experiência na UFSB com a minha trajetória de professora da área de Linguagens na Educação Básica, hoje estou mais do que convencida de que o trabalho pedagógico com a Língua Portuguesa na Educação Básica, não pode prescindir do princípio de que língua é poder – e que tem sido muito mais poder colonial e colonizador nas instituições de ensino, diga-se de passagem. Dessa forma, a organização do trabalho educacional 146EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAna área de Linguagens precisa ser desenvolvido em diálogo com outras áreas de conhecimento, por meio de perspectiva crítica à colonialidade e à monocultura do saber, acolhendo e dignificando, em perspectiva pluriepistêmica, saberes, poéticas, estéticas, gêne-ros textuais, ciências, corpos menosprezados pela lógica curricular hegemônica, de base linear, monoepistêmica e colonizadora. A partir da perspectiva trabalhada neste capítulo, mostra--se imperioso que, na Educação Básica, as disciplinas de Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Produção Textual e Literaturas, incluam tanto categorias conceituais como racismo linguístico13, pretuguês, amefricanidade14, entre outras que rompem com as co-lonialidades do saber, do poder e do ser; como também levem em consideração na organização do trabalho escolar princípios políti-co-pedagógicos decoloniais e antirracistas.Alguns desses princípios podemos traduzir nas seguintes ações orientadoras da organização do trabalho pedagógico na escola ou na universidade: 1. Radicalidade da escuta enquanto metodologia articuladora do currículo e dos processos político--pedagógicos (escuta de sujeitos e sujeitas pertencentes a terri-tórios de saberes negro-brasileiros ou indígenas, de lideranças de 13 Racismo Linguístico é um conceito cunhado pelo linguista Gabriel Nascimento (2019) para dar conta dos processos de racialização em virtude dos usos de palavras ou expressões e também devido a políticas linguísticas racistas, que significaram domínio sobre as populações negro-africanas e indígenas no Brasil, como uma marca da nossa colonialidade. 14 Amefricanidade e Pretuguês são categorias conceituais criadas por Lélia Gonzalez (2018) para interpretar e analisar o Brasil a partir da perspectiva negra. Nessa interpretação original e (de)colonial da nossa cultura, Lélia afirma a experiência negra nas Américas, resgatando a dinâmica reelaboração da herança africana no Novo Mundo, a partir dos negros africanos escravizados. Dessa forma, ela relaciona a condição de subalternidade da população negra brasileira à toda experiência racista da diáspora africana. Já o Pretuguês, conceito-chave para relacionarmos a linguística com a história do poder colonial, descentra a língua do coloniza-dor português ao apontar o que se quer esconder: a história da Língua Portuguesa no Brasil é a história do contato com línguas dos povos originários das Américas e dos povos negros africanos espoliados pelos processos de escravização e genocídio. 147FABIANA LIMAmovimentos sociais, de escritores e intelectuais negras/os e indí-genas); 2. Pluriversalidade de saberes africanos, afro-brasileiros, dos povos originários, de movimentos políticos indígenas, de mo-vimentos políticos negros; 3. Enfrentamento da colonialidade (do saber, do ser, de poder); 4. Enfrentamento do racismo epistêmico; 5. Organização dos processos por meio de coletivos de aprendiza-gem de corpo inteiro, incorporando territórios de saberes, cosmo-logias e pedagogias afro-brasileiras e indígenas, rompendo com a lógica dual, (euro)centrada na razão de produzir saberes com estudantes sentados e enfileirados em suas carteiras escolares.Voltando a escreviver: finalizando por oraFinalizo retomando a reflexão crítica sobre a potência eman-cipatória do termo escrevivência, criado por Conceição Evaristo (2007), porque o exercício de escreviver neste capítulo representa também uma escolha estética, textual, memorialística, literária, política, pedagógica e educacional. Para além da escrita em pri-meira pessoa, ao trazer memórias selecionadas da minha longa trajetória profissional, acabo por trabalhar textualmente outro princípio decolonial significativo, que tem dado forma à minha atuação docente e intelectual: utilizar o arcabouço da memória para, através dela, devassar os limites da estética e da educação de paradigma colonial e racista. Afinal, transcorridos 20 anos de promulgação da Lei nº10.639/03, o trabalho pedagógico com as relações étnico-raciais, com a história e cultura africana, afro-brasileira e indígena ainda não se tornou sistemático na educação brasileira nem tampouco no ensino de Língua Portuguesa. Apesar dos avanços, o desenvol-vimento de pesquisas e ações antirracistas ainda estão relegadas às margens das nossas instituições de ensino, quase sempre como 148EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAações individualizadas de professores/as, gestores/as e pesquisa-dores/as negros/as e indígenas, com histórico de militância polí-tica, já que, no âmbito da institucionalidade, nossas escolas, uni-versidades e redes educacionais têm se restringido a atender ao mínimo necessário para o cumprimento da legislação educacional vigente, no que tange à resposta crítica ao racismo epistêmico. Nesse sentido, a escrevivência acadêmica tecida neste capí-tulo não somente adquire o sentido de colocar a minha trajetória aprendente – na perspectiva de professora e intelectual negra – como objeto de investigação crítica acerca das possibilidades de atuação docente comprometida com perspectiva epistemológica antirracista, interdisciplinar e pluriterepistêmica, mas sobretudo dialoga com uma estética literária que permite o atravessamento (de)colonial da Língua Portuguesa e da tradição literária hegemô-nica estudada na Educação Básica. Que seja também inspiração pedagógica (de)colonial para as/os colegas professoras/es que agora me leem! Axé! Muito Axé!ReferênciasBRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educa-ção. Parecer CNE/CP nº03/2004, de 10 de março de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasi-leira e Africana. 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Acesso em: 9 jul. 2023.O perigo da hegemonia no ensino de Língua Inglesa (EUA/Europa):ensinando o inglês a partir da perspectiva afrorreferenciada no chão da sala de aulaDinalva Marreiro Pereira TodãoIntrodução“Para ter um futuro garantido é necessário ter uma segunda lín-gua... É preciso conhecer a Língua Inglesa”. Ouvi essa frase durante a minha infância e por toda a minha adolescência da maioria dos adultos ao meu redor. Não havia espaço para questionamentos, já que o que ouvíamos nas estações de rádio eram músicas “estran-geiras” (na Língua Inglesa) e os filmes aos quais assistíamos eram os que Hollywood ofertava em meados da década dos anos 1980 e 1990 com aquele estereótipo do modelo padrão: homem, branco, hétero, cristão e estadunidense.Como aluna de escola pública, filha de uma costureira e de um carteiro, a renda familiar não cabia supérfluos: bancar estu-dos em escola de idioma para dois filhos estava fora de cogitação. Minha tarefa era estudar autodidaticamente para cumprir a frase ressonante do “futuro garantido”.154EDUCAÇÃO ANTIRRACISTANo ano de 2012, houve a inserção do ensino de Língua Ingle-sa no ciclo de alfabetização e com ele tive a oportunidade de le-cioná-la nesse ciclo. Que experiência potente! Ofertar às crianças práticas pedagógicas que não sejam apenas para o porvir, mas sim a construção de uma consciência crítica e histórica, bem como despertar para o Letramento Racial, o qual não tive. Dada a emergência da aplicabilidade da Lei nº 10.639/2003 especificamente no componente curricular de Língua Inglesa em instituições de ensino público e privado, faz-se necessária a refle-xão de possibilidades e o fazer educativo nas aulas de Inglês, já que essas intencionam ser violentas, excludentes e injustas. Tal pro-posição afrorreferenciada se sustenta a partir das práticas e dos fazeres pedagógicos mediados por mim no chão da sala de aula em uma unidade da rede pública do município de São Paulo, resulta-do de muita pesquisa, estudo e aplicação em sala de aula.O objetivo deste artigo é trazer um olhar questionador so-bre o ensino de Língua Inglesa que é alicerçado sobre o viés da colonialidade do saber e do poder impostos pelo Norte global, às vezes num tom conversacional, levando em consideração as espe-cificidades de cada povo, principalmente do continente africano, enaltecendo e respeitando a diversidade, pluriversalidade e a mul-ticulturalidade existente no mundo. Também, discutir a possibili-dade do ensino de Inglês afrorreferenciado como uma abordagem pedagógica que promove a representatividade e a valorização da cultura africana no contexto educacional. O ensino de Língua Inglesa afrorreferenciado: sim, é possível! A educação é um direito fundamental de todas as pessoas e a representatividade é essencial para a construção de identidades 155DINALVA MARREIRO PEREIRA TODÃOpositivas e inclusivas. Para isso faz-se necessário articular teo-rias/saberes decoloniais1, autores que trazem olhares descontru-ídos sobre o que está posto, bem como a contribuição do movi-mento negro brasileiro às práticas no chão da sala de aula, como defende Nilma Lino Gomes (2017, p.24), pois se entende que des-ta forma pode-se fortalecer a autoestima das crianças pretas e minimizar os tentáculos do racismo.Na luta pela superação desse quadro de negação de direitos e de invisibilização da história e da presença de um coletivo ét-nico-racial que participou e participa ativamente da constru-ção do país, o Movimento Negro, por meio de suas principais lideranças e das ações dos seus militantes, elegeu e destacou a educação como um importante espaço-tempo passível de intervenção e de emancipação do social mesmo em meio às ondas de regulação conservadora e da violência capitalista.O Brasil é o segundo país de maior população preta do mundo de acordo com Machado (2020 apud Silva, 2020, p.5), “em proje-ções atualizadas 56,1% dos brasileiros de declaram negros, grupo que reúne os autodeclarados pretos e pardos (119 milhões) de acor-do com dados do IBGE”. Alicerçado por grande influência histórica e cultural da diáspora africana na formação da sociedade contem-porânea, argumentamos que o ensino de Língua Inglesa deve ir além do aprendizado da língua como uma habilidade comunicativa e também se tornar um veículo para a pluriversalidade cultural.Como resultado da palestra proferida por Chimamanda Adichie no TED Talk em 2009, teve a publicação dez anos depois da obra O perigo de uma história única (2019), sendo um marco rumo ao pensamento decolonial. Ainda vivemos em uma sociedade pautada 1 “A decolonialidade refere-se à luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos” (Maldonado-Torres, 2020, p.36).156EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAno eurocentrismo em seus variados aspectos de ser e estar no mun-do, resultado de exploração, dominação e dizimação de povos.Particularmente, nunca havia problematizadoa respeito da existência de uma história única, e quanto isso é um perigo! Essa questão está tão encrustada no inconsciente coletivo das pessoas que passamos uma vida sem questionar certas “verdades” impos-tas a nós e nem percebemos que nessa articulação existe uma re-lação de subalternidade em determinadas classes e grupos sociais, bem como na própria língua.A contribuição de Chimamanda Ngozi Adichie (2019) é um convite para descortinar o véu da alienação e despertar o olhar para as outras histórias: as não contadas, mas que existem, as contadas oralmente, as gritadas, as desenhadas; pois se vivemos num mun-do em que a diversidade e equidade são balanceadas, precisamos, para ontem, colocar os “bodes na sala”. A partir desse contexto, in-dagamos o atual ensino da Língua Inglesa e seu modus operandi.A abordagem decolonial procura desconstruir a lógica da su-perioridade e inferioridade presentes nas relações coloniais, valo-rizando e respeitando as perspectivas e conhecimentos indígenas, afrodescendentes e de outras comunidades marginalizadas. Isso implica dar voz e poder às pessoas que historicamente foram sub-jugadas e silenciadas, reconhecendo e dando vez à diversidade de experiências e saberes. O ensino de inglês é um produto do colonialismo não apenas porque é o colonialismo que produziu as condições iniciais para a disseminação global do inglês, mas porque foi o colo-nialismo que produziu muitos dos modos de pensar e agir que ainda fazem parte do Ocidente. A cultura europeia/ocidental não apenas produziu o colonialismo, mas também foi produ-zida por ele; o ensino de inglês não apenas foi carregado nas costas do colonialismo para os cantos distantes do Império, 157DINALVA MARREIRO PEREIRA TODÃOmas também foi produzido por essa viagem. (Nascimento, 2019 apud Pennycook, 2019, p.59)No campo da Educação, a decolonialidade propõe uma trans-formação dos currículos e práticas pedagógicas, para incluir perspectivas diversas, histórias não contadas e epistemologias subalternizadas. Busca-se descolonizar o ensino (aqui no de Lín-gua Inglesa), valorizando as contribuições culturais, intelectuais e históricas das comunidades marginalizadas e promovendo uma educação que seja emancipatória e libertadora.A decolonialidade questiona as narrativas e epistemologias dominantes que perpetuam a marginalização, a subalternidade e a exploração de certos grupos sociais. Ela busca desafiar as hie-rarquias de poder, as estruturas de dominação e os sistemas de pensamento que foram impostos pelos colonizadores, muitas ve-zes resultando na negação e supressão das identidades, culturas e conhecimentos locais.Ao abordarmos a importância da Lei nº10.639/03 no contexto educacional e como ela pode ser um instrumento para garantir a inclusão e a diversidade no ensino de Língua Inglesa, também se discutem as políticas educacionais e as leis que promovem a igualdade racial e a valorização da cultura afrodescendente, des-tacando exemplos de países que têm adotado abordagens afrorre-ferenciadas no ensino de Inglês. A partir dessa perspectiva e com urgência, faz-se necessá-ria a aplicabilidade da lei que garante o ensino da História da África e a Cultura Afro-Brasileira no componente curricular de Língua Inglesa nas séries iniciais do ciclo de alfabetização. A Lei nº10.639/2003 é uma legislação brasileira que estabelece a obriga-toriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-cana nas escolas do país. Foi promulgada em 9 de janeiro de 2003, 158EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAdurante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e repre-senta um marco importante para a promoção da igualdade racial e o combate ao racismo no contexto educacional. Mesmo sendo lei, portanto obrigatória, não fica evidente a sua prática, nem no ensino de Língua Inglesa, nem para o ciclo de alfa-betização, entretanto esta proposta de trabalho vai na contramão do sistema, resultado de muitas leituras de obras enegrecidas, cur-sos afrocentrados, conversas com pessoas que compartilham des-se paradigma. Ao construirmos essa perspectiva, nos deparamos em duas questões importantes: como ensinar a língua do coloni-zador (que é a dita língua da globalização) para as crianças pela perspectiva afrorreferenciada (partimos do pressuposto de que es-tão no processo de aquisição das habilidades oral e escrita de sua língua materna) e como o corpo docente está encarando esse novo viés de ensino, tirando o foco de Estados Unidos e Inglaterra como os “donos da língua”, se familiarizando com o universo plural no qual vivemos, trazendo outros protagonistas para a sala de aula.É o que Flávius Almeida dos Anjos (2019, p.19) defende em sua obra Desestrangeirizar a língua inglesa: um esboço da política linguística. Ele postula que:Pensar a aprendizagem de uma língua nova para além da sala de aula é tomá-la como uma questão de ordem política, o que de fato é. No tocante ao ensino/aprendizagem da lín-gua inglesa, não adotar uma postura crítica, que entenda esse idioma em sua faceta política, ainda tem causado problemas para os envolvidos desse processo. Esses problemas envolvem uma visão equivocada de identidade, supremacia de povos, sotaques, inteligibilidade etc. Por isso é relevante esclarecer o caráter político de uma outra língua, aos que se interessam pela sua aprendizagem.159DINALVA MARREIRO PEREIRA TODÃOVivemos um momento histórico em que pautar o ensino de Língua Inglesa, apenas pelo viés do Norte global (isso ainda ocor-re), carece de discussão, pois os falantes dessa língua não preci-sam seguir um único modelo (sotaque estadunidense – precisa-se discutir o termo americano – ou sotaque britânico, por exemplo) para interações internacionais: um indiano pode interagir perfei-tamente, falando a seu modo, respeitando a sua identidade local (Inglish: inglês falando na Índia), como um nigeriano proveniente do sul da Nigéria (Pidgin English). Quando entendemos e aceita-mos essa perspectiva, tiramos o caráter de padrão e nos realinha-mos rumo à desestrangeirização da Língua Inglesa. Ao se debruçar sobre os escritos de Anjos (2019), observa-se a emergência de um fazer educativo mais humano e equitativo, respeitando a origem e identidade de quem aprende, não impondo a imitação das pronúncias e sotaques de nativos, já que falantes da Língua Inglesa correspondem à maior parte de todo o mundo se compararmos aos falantes dos países considerados nativos. O “inglês” deixou de ser um adjetivo pátrio e passou a ser a língua do mundo (World English). Essa mesma lógica de ressignificação de termos, bem como a intencionalidade que está por trás dela, dialoga com “língua fran-ca”, como Gabriel Nascimento cita em sua obra Racismo linguísti-co: os subterrâneos da linguagem e do racismo (2019, p. 58):A própria manifestação do inglês e seu crescimento enquanto língua franca, não é algo neutro, mas um profundo processo de poder do próprio racismo em sua via global, naquilo que Grosfoguel (2016) analisa, partindo de Frantz Fanon, como a manutenção da linha do não ser no sistema-mundo.Na garupa do olhar referente à língua do colonizador, enalteço a transgressora e referência no assunto, bell hooks (2017, p. 225), 160EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAe como a leitura de um verso de um poema, atravessou-a, deixan-do incomodada:Penso agora no sofrimento dos africanos desalojados e ‘sem lar’, obrigados a habitar num mundo onde viam pessoas iguais a si, com a mesma cor de pele e a mesma condição, mas sem uma língua comum para falar um com os outros, que precisavam de língua do opressor. Esta é a língua do opressor, mas preciso dela para falar com você. Quando imagino o ter-ror dos africanos a bordo do navio negreiros, nos palanques de leilões, habitando a arquitetura insólita das fazendas de monocultura, considero que esse terror ia além do medo da punição e residia também na angústia de ouvir uma língua que não compreendiam. O própriosom do inglês devia ater-rorizá-los.Ao partirmos para essa discussão, não queremos tirar a im-portância que a Língua Inglesa tem para as relações internacio-nais, a economia, a tecnologia etc. no mundo, já que, queiramos ou não, vivemos num mundo globalizado, e aqui deixo uma inquieta-ção referente ao termo “globalização”: o que é? De onde se origi-na? Para quem serve? Termo que já internalizamos e utilizamos, muitas vezes sem dar a sua devida criticidade; independentemen-te disso, sabemos o papel que a Língua Inglesa exerce2.Essa língua intercambia, por exemplo, uma Copa do Mundo. Tal evento ocorreu no Oriente Médio, Catar (que tem como língua oficial o árabe), em 2022. O evento acolheu várias nações do mun-do, e, ainda assim, foi através do inglês que a comunicação entre os povos aconteceu. Pouco provável a busca por um curso intensivo para aprender a língua árabe, pelo simples fato futebolístico mun-dial; a língua inglesa cumpre esse papel. 2 Para aqueles interessados no assunto, sugiro a leitura do livro A língua inglesa na África: opressão, negociação e resistência (2011), de Ângela Lamas Rodrigues.161DINALVA MARREIRO PEREIRA TODÃOComo Paulo Freire afirma, a “leitura do mundo precede a leitu-ra da palavra”, e toda realidade vivida é a base para qualquer cons-trução de conhecimento. Molefi Kete Asante (1989 apud Souza Neto, 2021, p. 180) diz: “toda linguagem é epistêmica. Nossa linguagem deve contribuir para o entendimento de nossa realidade”. Por conta da abrangência que as grandes mídias propagaram, é possível reali-zar uma sequência didática, numa perspectiva do ensino de Língua Inglesa afrorreferenciado, elencando os países do continente africa-no que fizeram parte da World Cup Qatar no ano de 2022 (Senegal, Marrocos, Tunísia, Gana e Camarões). Os estudantes certamente estão familiarizados com o evento mundial, pois se noticiou todos os dias, a todo momento, nos canais abertos e acessíveis.Por meio de vídeos do YouTube, os estudantes podem conhecer o território (população, cultura, principal economia etc.) de cada país do continente, observando a pluralidade de povos existentes, bem como a sua língua oficial (geralmente a língua do invasor/colo-nizador) e as outras línguas faladas no mesmo país. Esse momento pode ser a brecha para dialogarmos sobre o nosso território, Brasil, por que falamos a Língua Portuguesa e refletirmos a já conhecida, ultrapassada pergunta retórica: “Quem descobriu o Brasil?”. É importante explicarmos que falamos o Português por conta da invasão portuguesa que aqui ocorreu, bem como a violência e dizimação de povos (os originários indígenas) provocada por esses opressores, que resultou a “data comemorativa 19 de abril – Dia do Índio” e o desconhecimento e separação de nossas raízes. Além disso, afirmamos que o Brasil não é um país monoglota, afinal não podemos ignorar a existência de 274 línguas oriundas dos povos originários que resistem neste “país tropical”.A atividade pode ter como ponto de partida a apreciação de mostra de camisas e bandeiras dos países do continente africano 162EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAque participaram dessa Copa, entregando a cada estudante o dese-nho delas para que cada um escolha a predileta para colorir. É im-portante destacar que toda a atividade deve estar em Língua Ingle-sa. Africa is not a country (África não é um país) é uma proposição que os estudantes precisam internalizar e confirmar por meio da vi-sualização diária ao mapa da África que pode ficar exposto em sala. Práticas como essas acontecem quando o teacher entende que o seu fazer não se limita ao que aprendemos nos bancos acadê-micos, bem como ao que o universo hollywoodiano nos oferta, já que muitos professores fazem uso desses personagens construí-dos com intencionalidade específicas, criados pela Disney, heróis estereotipados e em sua maioria com representatividade branca, como atividade para as crianças. Vale lembrar que o longa-metragem de 2018, Pantera Negra (Black Panther), foi o primeiro filme do gênero de super-heróis a ser protagonizado por pessoas pretas em todo o filme. Se pensar-mos em questão de tempo da existência de filmes, passou da hora de se produzir esse tipo de entretenimento que contemple pessoas pretas, não apenas uma ou duas pessoas para compor “a cota”.Como o fazer educativo no chão da sala de aula no ensino de Língua Inglesa afrorreferenciado é para as crianças, necessita de uma abordagem lúdica, porém com intencionalidade e responsa-bilidade. O filme de longa-metragem e animação Kiriku e a Feiti-ceira3 se encaixa nesta proposta. O produtor Michel Ocelot, francês que passou a infância na Guiné (país da África Ocidental), observou com grande curiosidade e entusiasmo o cotidiano das crianças guineenses e, quando adulto, lançou também, a sua continuação em dois outros longas: Kiriku e 3 Título original: Kirikou et la Sorcière.163DINALVA MARREIRO PEREIRA TODÃOos animais selvagens 2,4 de 2005, e Kiriku e as pessoas e histórias 3,5 do ano de 2012.Protagonizando a história de um menino e toda a sua trajetó-ria com seu povo, apresenta o cenário/local com riquezas de deta-lhes reais, sem suavizar corpos e semblantes negroides, quebrando os estereótipos e a padronização judaico-cristão, branca. A apresentação do filme é em português, pois os estudantes es-tão em fase de desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita em sua língua materna. Fica a cargo da professora de Língua In-glesa a intervenção necessária para a realização das aprendizagens da língua. No pós-filme e início de conversa, podem-se trabalhar alguns dos valores civilizatórios6, idealizados por Azoilda Trindade presentes no filme Ancestry, memory, circularity (2010) etc. a fim de realização do warm up, com indagações intencionais, por exemplo.Proveniente das imaginações plurais infantis, ao questionar-mos se gostaram do vídeo, as respostas das crianças podem ser as mais diversas e interessantes. Aqui é o momento em que podemos contribuir para a construção da consciência pluricultural, quando elas, ávidas por conhecimento, podem aproximar-se de respostas decoloniais, como a diferença entre língua e dialeto apresentado por Lopes (2021, p.198):No Brasil, o senso comum acostumou-se a mencionar qual-quer comunidade étnica africana como ‘tribo’, e todas as línguas como ‘dialetos’. Entretanto, essa forma de menção é equivocada, pois o conceito de tribo é relativo, e as sociedade africanas conheceram e conhecem diversas outras formas de organização, como a família extensa, o clã e as associações 4 Título original: Kirikou et les Bêtes Sauvages.5 Título original: Kirikou et les Hommes et les Femmes.6 Circularidade, religiosidade, corporeidade, musicalidade, cooperativismo/comunarismo, ancestralidade, memória, ludicidade, energia vital (axé), oralidade (Trindade, 2010).164EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAvoluntárias, por exemplo. Quanto a dialeto, o que define esse tipo de expressão linguística é apenas ser a variação que uma língua apresenta de uma região para outra; ou um falar re-gional dentro de uma comunidade onde predomina um falar mais amplo, de onde aquele se originou. Dessa forma, as lín-guas africanas não são ‘dialetos’, e sim ocasionais matrizes de dialetos que delas nasceram.Outra abordagem da Língua Inglesa afrorreferenciada é por meio dos jogos: o Shisima Game é um exemplo. Provém do Quênia, país localizado na África Oriental e que tem como línguas oficiais o inglês, suaíli e mais de 60 línguas. Incialmente, é importante apre-sentar, através de um pequeno texto, informações relevantes e em inglês sobre esse país e o povo que inventou esse jogo (Tiriki people). Um dos objetivos da prática é reconhecer palavras em inglês por meio da visualização de imagens em jogos – bingo, jogo da velha, jogo da memória –, com a pluriculturalidade de diferentes povos. Assim, a escolha do Shisima Game se dá pelo fato de ser um jogo muito simplese semelhante ao já conhecido jogo da velha. A proposta não é somente a apresentação do jogo pelo jogo, uma atividade simples e esvaziada, e sim fornecer todo o conhecimento que está por trás dele. Compreendemos que assim todas as crianças entenderão a pluriculturalidade entre os povos: as crianças pretas serão re-presentadas e reestabelecido o seu empoderamento, e as brancas saberão que existem pessoas (povos) além do que elas estão ha-bituadas a ver e, consequentemente, assim combater o racismo estrutural7, defendido por Silvio de Almeida (2019). 7 “Entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas” (Almeida, 2019, p.40).165DINALVA MARREIRO PEREIRA TODÃOLevando em conta esses exemplos de usos/práticas da Língua Inglesa afrorreferenciada, se faz necessário também trazer à tona a questão do livro didático, por ser ainda considerado um dos prin-cipais instrumentos de trabalho. Essa discussão se encontra num processo embrionário, pois a oferta de livros didáticos de Língua Inglesa que contempla essa perspectiva é parca, pois a escola, em seu hirto modelo colonial, sugere a propagação de uma pedagogia que dê prosseguimento a esse status quo. Entretanto, a baiana de Salvador Ana Célia da Silva, em sua obra Desconstruindo a discri-minação do negro no livro didático (2021, p.20), analisa: Os currículos, programas, materiais e rituais pedagógicos privilegiam os valores europeus em detrimento dos valores de outros grupos étnico-raciais presentes na sociedade. Os valores desses grupos, são na maioria das vezes, ocultados ou apresentados de uma forma tal que não coloque em conflito os valores dominantes. Em consequência, as populações, ex-cluídas podem vir a privilegiar os valores da história e cultura oficial como os únicos a serem considerados, renegando os seus próprios valores, se o processo pedagógico, o seu coti-diano, a sua cultura, não favorecer lhes oportunidades de re-flexão e reelaboração.Percebe-se que a iniciativa parte dos professores que atuam no chão da sala de aula e se angustiam com essas invisibilizações e silenciamentos; muitas vezes, atuam de maneira isolada, tentando parcerias que “já viraram a chave”, dialogando com colegas de pro-fissão que, de alguma forma, atravessam nessa perspectiva deco-lonial, rumo à concretização do verdadeiro significado de Ubuntu8 nos bancos escolares, pois, retomando o olhar supracitado de Ana Célia Silva (2021, p.20-21), “além da omissão e distorção históri-co-cultural, a presença dos estereótipos no livro didático e outros 8 “Eu sou porque nós somos” e não fazemos nada sozinhas.166EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAmateriais pedagógicos pode determinar a rejeição inconsciente de um saber que humilha”. É inaceitável permanecer no campo da discussão nas redes sociais sem revisitar a pauta para a construção de teses de douto-rado, para uma academia que ainda está cristalizada numa estru-tura colonial. É necessária a confecção/elaboração/construção de materiais didáticos responsáveis que reflitam a pluriversalidade cultural, incluindo textos, autores e exemplos que representem a experiência africana e afrodescendente em Língua Inglesa para as crianças, de modo a evitar a marginalização dos conteúdos rela-cionados à cultura afro-brasileira.A inclusão desses materiais didáticos promoverá a valoriza-ção da cultura afro-brasileira, resgatará a história e a identidade dos povos africanos e afrodescendentes e contribuirá para a cons-trução de uma sociedade mais justa e igualitária de forma trans-versal. É importante que eles estejam integrados aos diferentes componentes curriculares de todas as áreas de conhecimento.Há muitas pessoas que contribuíram e que contribuem para o despertar do olhar decolonial. Acredito que é esse o verdadeiro significado de Ubuntu. Sugiro os vídeos Talking Black In America9 e Black English: how AAVE developed from slave resistance and african dialects10. Dentre os trabalhos que estão empenhados com o proces-so de realinhamento de narrativas, não somente no ensino de Lín-gua Inglesa e sim um fazer educativo decolonial, deixo aqui algu-mas potências que servem para “virar a chave” e despertar o olhar: • Ana Paula Campos, palestrante e autora dos livros (Crôni-cas para acordar a Casa-Grande, Forjadas na dor e Vesti-me de amor), professora do Ensino Fundamental nos anos iniciais no 9 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=8QFpVgPl9tQ&t=605s.10 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=K7FIky7wplI.167DINALVA MARREIRO PEREIRA TODÃORio Grande do Norte, nos auxilia a ressignificar o nosso olhar, despertando para a elaboração de práticas na perspectiva afro-centrada11; • Maria Carolina Azevedo, professora de Língua Inglesa na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, realiza um traba-lho a partir da perspectiva das relações étnico raciais e na for-mação de professores12;• Shirlei Sena, professora de História do Rio Grande do Sul, em Cachoeirinha, atua a partir da perspectiva africana e antir-racista, produzindo o próprio material com atividades afrorre-ferenciadas para seus estudantes13.Tal assunto não se esgota e, na medida em que estudamos e pesquisamos, percebemos que carece de mais estudo e pesquisa. Esse diálogo, beirando a informalidade de maneira proposital, se encerra com o convite para olharmos para trás, no movimento Sankofa, um dos símbolos Adinkra, que tem o significado “sabedo-ria: aprender com o passado para construir o futuro”, proveniente de Gana (país da África Ocidental), do povo Akan, e nos debru-çarmos criticamente sobre a história que nos foi contada, a fim de ressignificarmos o nosso olhar; portanto, o fazer pedagógico, trazendo a perspectiva da Língua Inglesa afrorreferenciada. A ideia não é tirar o que está posto e sim descortinar novos jeitos de se ensinar essa língua, trazer novos protagonistas, dar vez às vozes silenciadas e realinhar narrativas. Encerro com a célebre frase do abolicionista estadunidense Frederick Douglass ([18--]), pois o meu fazer pedagógico no chão de sala de aula me mostra 11 Ver: https://www.instagram.com/camposapnc#.12 Ver: https://www.instagram.com/mariacarolinaaazevedo/#.13 Ver: https://www.instagram.com/shirleisena/#.168EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAdiariamente que “é mais fácil construir crianças fortes do que con-sertar homens quebrados”14.ReferênciasADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Tradução: Julia Rome. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.ANJOS, F. A. dos. Desestrangeirizar a língua inglesa: um esboço da política linguística. Cruz das Almas: EdUFRB, 2019.BRASIL. Lei nº10.639, de 09 de janeiro de 2003. Institui a inclu-são no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras provi-dências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 140, n.8, p.1, 10 jan. 2003. 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Também é o continente que mais contribuiu para a formação social e cultural do Brasil; sendo assim, o segundo país de maior população negra do mundo (con-sequentemente, a maioria de nossa população, aproximadamente 56%, é preta), atrás somente da Nigéria. Estes são alguns motivos pelos quais precisa-se estudar a história do continente africano, contemplando a Lei nº10.639/03 (Brasil, 2003), que insere a His-tória da África e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino público e particular. Em 2023, a Lei nº10.639/03 completou 20 anos de existência. Apesar do avanço com sua promulgação, resultado das lutas do Mo-vimento Negro durante décadas, ela ainda não é aplicada nas uni-dades educacionais como deveria. Muitos profissionais ainda não conhecem e poucos realizam práticas realmente eficazes durante o 172EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAano e não somente no mês de novembro. No Brasil, trabalhar essa lei é mais do que falar sobre a escravização dos seres humanos afri-canos, fato que ocupa menos de 1% de toda a história do vasto, rico (material e imaterial) e heterogêneo continente africano. Este capítulo tem o objetivo de contribuir na luta rumo à edu-cação decolonial, cumprindo o papel de descolonizar o currículo e aplicar a Lei nº 10.639/03, mostrando uma das maiores (ou a maior) contribuições que a África trouxe para toda a humanidade: a Matemática. Além de desmistificar o racismo científico oriundo há séculos, prova que os povos africanos são produtores de conhe-cimento desde o início da humanidade, que a África é território da invenção e de uma grandiosa evolução na Matemática e nas Ciências. Os povos africanos, tanto mulheres quanto homens, são responsáveis pela considerada “Matemática grega” e/ou “Mate-mática ocidental”; portanto, tudo que ensinamos e aprendemos hoje no Ensino Básico foi uma produção de nossos ancestrais.As tecnologias de mineração e metalurgia, a agricultura, a criação de gado, as ciências, a medicina, a matemática, a en-genharia, a astronomia, enfim, todo um conjunto de conhe-cimento tecnológico e reflexão filosófica, caracterizavam tan-to os Estados africanos como outras coletividades menores. (Nascimento, 2008, p.40)Breve história da MatemáticaA Matemática é tão antiga quanto o tempo do ser humano no mun-do. Pode-se dizer que, desde o início da humanidade, já se usavam conceitos matemáticos, que contribuíram para o desenvolvimento durante todo o período da História. Estudos científicos apontam que o ser humano teve sua ori-gem na África, provavelmente na região conhecida como Vale da 173JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOGrande Fenda ou Grande Vale do Rifte, que abrange os territórios de Etiópia, Quênia, Tanzânia e Uganda. De acordo com a síntese da coleção “História Geral da África”, o humano é um mamífero da família Hominidae que surgiu há cerca de 30 milhões de anos e o último gênero desse grupo foram os Australopithecus. D’Ambrosio (2020, p.35) diz que os Australopithecus utilizavam instrumentos de pedra lascada para descarnar os animais, permitindo raspar os ossos, aproveitando todos os pedaços e nutrientes:Na hora que esse australopiteco escolheu e lascou um pedaço de pedra, com o objetivo de descarnar um osso, a sua mente matemática se revelou. Para selecionar a pedra, é necessário avaliar suas dimensões, e, para lascá-la o necessário e o sufi-ciente para cumprir os objetivos a que ela se destina, é preciso avaliar e comparar dimensões. Avaliar e comparar dimensões é uma das manifestações mais elementares do pensamento matemático.O gênero Homo iniciou-se com os hominídeos entre 6 e 7mi-lhões de anos. Eles viviam da caça de pequenos animais e das fru-tas e raízes que colhiam e tinham de adaptar seus instrumentos de pedra, madeira e osso de acordo com a necessidade. O Homo habi-lis (ser humano habilidoso, aquele que fabrica seus próprios uten-sílios), há 3milhões de anos, aperfeiçoou os machados e instru-mentos de pedra; o Homo erectus, há 2milhões de anos, dominou o fogo e o Homem de Neanderthal, há 300mil anos, aquecia suas cavernas e cozia os animais com fogo para se alimentar, além de registrar suas caçadas em pinturas murais elegantes e detalhadas. O Homo sapiens (ser humano racional e moderno) criou fer-ramentas de osso, lâmina e pedra. Posteriormente, o Homo sapiens sapiens, há 250mil anos, substituiu as cavernas por estruturas mó-veis, com barracas de peles de animais e estruturas de madeira, além de esculpir estatuetas de fertilidade e ícones religiosos com 174EDUCAÇÃO ANTIRRACISTApedras. Todas as etapas do desenvolvimento humano aconteceram em solo africano.O homem aparece, portanto, ao fim de uma longa história, como um primata que um dia aperfeiçoa o utensílio que vem usando já há muito tempo. Utensílios fabricados e habitações revelam de súbito um ser racional que prevê, aprende e trans-mite, constrói a primeira sociedade e lhe dá sua primeira cul-tura (Silvério; Rocha; Barbosa, 2012, p.94).Asante (2022, p.39) diz que “os africanos foram os primeiros cientistas no sentido de que toda ciência tem raízes em técnicas, artesanato e artes”. Mesmo em épocas mais remotas, o ser humano tinha algum senso numérico, reconhecendo a noção de mais e me-nos quando se acrescentavam ou retiravam alguns objetos, além de discernir o tamanho maior e menor. Segundo Ifrah (1998, p.16-17),as possibilidades numéricas de nossos ancestrais resumiam--se na apreciação global do espaço ocupado pelos seres e ob-jetos, no máximo estabelecendo uma diferença nítida entre a unidade, o par e a pluralidade.Ronan (1987, p.18) defende a ideia de que talvez a Astronomia tenha sido o primeiro estudo distinto a obter aplicação da Matemá-tica: “para se usar o céu como relógio ou calendário, necessita-se de números. E medir a distância entre a Lua e as estrelas e o hori-zonte também implica o emprego de números”.Com o decorrer do tempo, os humanos começaram a cultivar a terra e criar animais, abandonando a vida de nômade e construin-do moradias fixas; assim, formando as primeiras aldeias, tornando necessária a contagem de pessoas da própria comunidade e de co-munidades inimigas, bem como a passagem do tempo (a Astrono-mia sempre esteve presente ao longo da história humana). Houve a necessidade de saber o aumento ou a diminuição de seu rebanho, 175JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOutilizando a correspondência biunívoca nos cálculos (contagem de um a um), seja com os dedos, pedras, nós em cordas ou entalhes em madeiras e ossos. Com este mesmo objetivo, homens de toda parte utilizaram também conchas, pérolas, frutos duros, ossos, pauzinhos, dentes de elefante, cocos, bolinhas de argila, grãos de cacau e até excrementos secos, tudo arrumado em montinhos ou em fileiras correspondentes à quantidade de seres ou de objetos que queriam enumerar. Do mesmo modo, alinharam riscos na areia, nós em pequenas cordas, ou debulharam pérolas e conchas enfiadas numa espécie de rosário. Também usaram os dedos das mãos ou os membros das diferentes partes do corpo humano(Ifrah, 1998, p.31).Existem alguns objetos descobertos por arqueólogos, que comprovam a prática da Matemática por diversos povos da An-tiguidade, principalmente no continente africano. Descoberto na Border Cave (Caverna da Fronteira), nos Montes Libombos (ou Montanhas Lebombo), entre a África do Sul e Essuatíni, o Osso de Lebombo é considerado por muitos cientistas como o objeto mate-mático mais antigo da história humana, datado aproximadamente de 35mil anos a.e.c.1, no Paleolítico Inferior. O osso, ou uma fíbula de babuíno, tem 7,7 centímetros, com 29 entalhes. Assemelha-se aos bastões calendário utilizados antiga-mente e ainda hoje pelo povo San, um dos povos mais antigos do planeta Terra, encontrados na África do Sul, Angola, Botsuana e Namíbia.1 Estamos mudando a forma colonial “antes de Cristo” (a.C.) para “antes da era comum” (a.e.c.).176EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAFigura 1 – Osso de LebomboFonte: site Ancient African History.com ([20--]).2Acredita-se que o Osso de Lebombo era usado para calcular números e medir a passagem do tempo, os ciclos lunares e o con-trole do ciclo menstrual das mulheres, já que um mês no calendá-rio lunar dura aproximadamente 29 dias e 12 horas (em alguns lu-gares, contam-se 29 dias em um mês e 30 dias no outro), e no Osso de Lebombo há 29 entalhes. Assim, acredita-se que as mulheres do continente africano foram as primeiras matemáticas da história, já que calculavam seu ciclo menstrual por meio do calendário lunar.Apesar de o Osso de Lebombo ser muito mais antigo, gran-de parte dos historiadores e cientistas só consideram o Osso de Ishango ou Bastão de Ishango como o objeto mais antigo da Ma-temática, por ter uma aritmética concreta, e, com isso, é estudado com profundidade. O osso, provavelmente, é de 20mil anos a.e.c., no Paleolítico Superior, proveniente do vilarejo de Ishango, que se localiza no nordeste da República Democrática do Congo, na divi-sa com Uganda, encontrado pelo arqueólogo belga Jean de Hein-zelin nos anos de 1950, às margens do Lago Eduardo. Atualmente, o osso (proveniente de algum mamífero) encontra-se no Instituto Real Belga de Ciências Naturais, em Bruxelas, na Bélgica. Por volta de 20 000 a.C. os caçadores das savanas haviam desenvolvido uma cultura complexa que incluía a feitura de ferramentas, linguagem, religião, arte, música e comér-cio. Os progressos na Matemática e na ciência, todavia, 2 Ver em: http://www.taneter.org/math.html. 177JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOeram obstados pelas estruturas social e econômica daqueles tempos remotos. Como os povos da Idade da Pedra eram caça-dores e não agricultores, tinham de se deslocar em consonân-cia com as estações e o sazonamento de frutas e castanhas. Só tinham condições de levar consigo ferramentas pequenas, fáceis de transportar, roupas e objetos pessoais (Eves, 2004, p.23).O Osso de Ishango é um pequeno osso petrificado, com ape-nas 10 cm de comprimento, e contém um cristal de quartzo em uma extremidade (provavelmente para gravar), com três séries de entalhes agrupados. Alguns arqueólogos dizem que os cálculos são referentes a um jogo aritmético; já outros dizem ser referente ao calendário lunar. Figura 2 – Osso ou Bastão de IshangoFonte: site Wikimedia Commos (2020).3O Bastão de Ishango tem sua coluna central com entalhes unidos em pequenos grupos, que mostram um número e seu duplo – de 3 e 6 entalhes; 4 e 8 entalhes; 5 e 10 entalhes –; e dois números fora desse padrão: 5 entalhes (que pode ser a soma do outro nú-mero 5, resultando o 10) e 7 entalhes. A coluna direita é formada por grupos de 11 (10 + 1), 21 (2 x 10 + 1), 19 (2 x 10 – 1) e 9 (10 – 1) entalhes, dando a probabilidade do uso da base 10. E a coluna da 3 Ver em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Huesos_de_ishango.jpg.178EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAesquerda é formada pelos números 11 (2 x 6 – 1), 13 (2 x 6 + 1), 17 (3 x 6 – 1) e 19 (3 x 6 + 1) entalhes; ou seja, números primos entre 10 e 20 e com a probabilidade do uso da base 6. Nas colunas da direita e esquerda, todos os números são ímpares.Aqueles que defendem ser um jogo aritmético afirmam a hi-pótese do conhecimento de operações com números duplicados, a utilização dos sistemas de numeração de bases 6 e 10, e os nú-meros primos (mesmo sem o conhecimento deste conceito) entre 10 e 20 (na coluna da esquerda). Para outras pessoas, a hipótese é ser a representação do calendário lunar, afirmando que a soma da coluna direita (11, 21, 19 e 9) e a soma da coluna da esquerda (11, 13, 17 e 19) são iguais a 60, ou seja, dois meses lunares, e a coluna central (3, 6, 4, 8, 5, 10, 5 e 7) dá um total de 48 traços, equivalente a um mês e meio lunar.Figura 3 – Osso de Ishango, Coluna A Fonte: site Wikimedia Commos (2020).4Figura 4 – Osso de Ishango, Coluna BFonte: site Wikimedia Commos (2020).54 Ver em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:IshangoColumnA.png.5 Ver em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:IshangoColumnB.png.179JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOFigura 5 – Osso de Ishango – Coluna CFonte: site Wikimedia Commos (2020).6Como as somas das três colunas do bastão são números múl-tiplos de 12, e como outros povos africanos antigos misturavam as bases 10 e 12 com seus múltiplos e submúltiplos, há grandes indí-cios de que esses povos foram influentes nos sistemas de numera-ção decimal e sexagesimal, utilizados nas primeiras civilizações da humanidade, que foram na Mesopotâmia com os sumérios, e em Kemet (atual Egito). Considerando que os grupos humanos na Antiguidade eram formados às margens de rios e lagos, que surgiram na África ao sul do Saara e povoaram todo o continente, inclusive subindo para a África do Norte, Ásia, Europa e ganhando o mundo, há a grande probabilidade de que o povo de Ishango, ao longo do tempo, te-nha chegado às primeiras civilizações. Além disso, como o Lago Eduardo é um dos afluentes do Rio Nilo, os ishangoenses também podem ter povoado outras civilizações (nas quais a genialidade em Matemática e Ciência foi grande) como os Reinos de Querma e Cuxe (na Núbia, atual Sudão e Sudão do Sul), o Império de Axum (atual Etiópia), Kemet (antigo e atual Egito), entre outros povos. Foi assim que em Ishango, ao norte do lago Eduardo, se encon-traram vestígios neolíticos datando de – 6500: mós e pilões de pedra polida e arpões de osso. A olaria de Elmenteita (Quê-nia), datando, sem dúvida, de há cinco milênios, constitui um 6 Ver em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:IshangoColumnC.png.180EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAelemento mais que permite inferir que o conhecimento da ce-râmica e das ferramentas ou armas de osso chegou ao Saara e ao Egito a partir das terras altas da África Oriental (Ki-Zerbo, 1972, p.66).Voltando a Ishango, vale lembrar que utilizamos os sistemas de numeração encontrados no osso e em outras comunidades afri-canas até hoje, como a dúzia, os meses do ano, as 24 horas do dia, as polegadas etc. (base 12); horas, minutos e segundos, 360 graus e seus submúltiplos (base 60); e diversas situações de nosso cotidia-no, no caso do sistema decimal. Considerando que a Matemática é uma construção humana e social, os conceitos e cálculos foram influenciados ao longo do tempo por diversos povos, principal-mente com a dispersão das pessoas para todos os continentes. En-tão, a conhecida Matemática egípcia, mesopotâmica, grega, entre outras, é oriunda de outros povos ancestrais de África, afirmando que esses povos, como o de Ishango, possuem uma enorme impor-tância na história da Matemática. No decorrer dos tempos, formaram-se novas estruturas e, na época conhecida como Revolução Agrícola (iniciando por volta de 11mil anos), apareceram as cidades, que se transformaram em civilizações, surgindo a agricultura e o comércio, havendo a neces-sidade do uso da escrita e do número. Em África, Kemet (Terra Preta ou Povo Preto) foi uma das pri-meiras civilizações e a mais importante da história,conhecida por nós como Egito (nome imposto pelos gregos), significando Hewe--ka Ptah (casa do ka de Ptah) ou lar da alma de Ptah (deus dos artesãos e arquitetos, dizem ser pai de Imhotep, um sábio conside-rado como o primeiro engenheiro, arquiteto e médico da humani-dade). Algumas fontes dizem que o Egito existe há mais de 5 mil anos e outras dizem existir há mais de 7mil ou 10mil anos, logo no início da Revolução Agrícola, bem antes do período faraônico. 181JEFFERSON DOS SANTOS TODÃONascimento (2008, p.62), falando sobre Kemet, diz que “além de dar à luz a humanidade, a África foi também o palco da primei-ra revolução tecnológica da história: a passagem da colheita de frutos silvestres à agricultura”. As contribuições keméticas para a humanidade se fazem numa lista extensa, seja na Matemática, Química, Medicina, Engenharia, Odontologia, Filosofia, Farmá-cia, política, têxteis, Literatura, Direito, urbanismo, dramatur-gia, vidro, roda, navios, criação de gado, agricultura, metalurgia, publicidade, cerveja, vinho, calendário (com 12 meses de 30 dias cada, com mais 5 dias no final do ano), papiro, tinta, caneta, escri-ta fonética, número (inclusive o sistema de numeração decimal), entre diversos outros ramos do conhecimento humano. O Egito faraônico nos deixou valiosa herança nos campos da física, química, zoologia, geologia, medicina, farmacologia, geometria e matemática aplicada. De fato, legou à humani-dade uma grande reserva de experiências em cada um des-ses domínios, alguns dos quais foram combinados de modo a possibilitar a realização de objetivos específicos (Silvério; Rocha; Barbosa, 2012, p.175).Apesar do uso constante da Matemática em diversos aspec-tos, seja na cobrança de impostos, na agricultura, no comércio, no transporte, na arte, na medicina, na arquitetura, no controle e es-timativa de alimentos e colheitas, nas estatísticas e nos censos da população nessa sociedade tão complexa, entre outros, dizem que a Matemática surgiu no Egito devido às constantes demarcações de terras por causa das cheias do Rio Nilo (desenvolvendo também técnicas para controlar as inundações e sistemas hidráulicos), que sempre apagavam as demarcações antigas. Ki-Zerbo (1972, p.80) diz que “foi necessário medir esta preciosa ‘terra negra’ palmo a palmo: criação da agrimensura e da profissão de escriba, assim como dos primeiros rudimentos do cálculo e da escrita”. Com as 182EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAdemarcações de terras, se originou a profissão dos famosos esti-cadores de cordas. Apesar de a Geometria existir no solo africano há muito tem-po e ser utilizada em diversas situações, os gregos só tiveram con-tato no Egito, inicialmente, com os esticadores de cordas; por isso, nomearam a Geometria como “medir a terra” ou “medida da ter-ra”, no qual geo = terra e metria = medir ou medida. Esse ramo da Matemática, que hoje estuda as medidas e as formas do mundo em que vivemos, foi muito importante também nas construções das casas, instituições e pirâmides egípcias, além nas demarcações de fronteiras de diferentes cidades. Os egípcios da Antiguidade tinham sofisticada capacidade matemática, a qual viria a ser a base da ciência ocidental, que ainda estava longe de surgir. Eles empregaram os conceitos de distância, área, peso, volume e tempo. Também inventa-ram unidades, métodos e normas de medição. E criaram a ge-ometria, a trigonometria, a álgebra e muitas outras técnicas matemáticas (Machado; Loras, 2017, p.38).Junto com a Matemática e a Geometria, surgiram a Arquite-tura e a Engenharia, ramos que exigiram grande conhecimento matemático, seja na proporcionalidade, nos cálculos e em tudo que envolveu a Geometria egípcia, que são os conhecimentos de figuras geométricas planas e espaciais, perímetro, área, volume, ângulos, simetria, entre outros. Geralmente, a primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos em Egito são as famosas e imponentes pirâmides, que exigiram diversos e precisos cálculos matemáticos. De acordo com Heródoto, Diodoro da Sicília e Maneton, as pirâmides foram feitas para servir de túmulo aos faraós, os “senhores da casa-grande”. Também, foram construídas com os elementos da Astronomia, de 183JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOacordo com o alinhamento e com os movimentos do Sol, das estre-las e dos planetas, assim como as fases da Lua.Na matemática, há um volume enorme de conhecimentos africanos. A construção das pirâmides egípcias, em torno de 2700 a.C., exigiu, por exemplo, um domínio avançadíssimo da engenharia baseado numa matemática de geometria capaz de projetar ângulos com 0,070 graus de precisão (Nascimento, 2008, p.44).As diversas formas de cálculos numéricos, assim como os di-versos textos de diversas áreas do conhecimento, estão registradas nos papiros, os antecessores do papel, feitos pela planta de mesmo nome. Por volta de 2600 a.e.c., o Egito transformou-se no grande exportador do papiro. Existem documentos que comprovam a Matemática feita em Kemet (Egito) ao longo dos tempos, como um cetro real (3100a.e.c.) que contém números na ordem de centenas de milhares e milhões; as tábuas de madeira de Akhmin (2000a.e.c.), que dão origem às frações egípcias; o instrumento astronômico mais antigo da huma-nidade (1850 a.e.c.); o relógio de sol mais antigo da humanidade (1650a.e.c.); um rolo de couro (1650a.e.c.) que contém 26 somas efetuadas por meio de frações unitárias e alguns problemas com medidas de comprimento; e diversos papiros, como o Reisner (1880 a.e.c.), Moscou (1850a.e.c.), Kahun (1825a.e.c.), Ahmes (1650a.e.c.), Rollin (1350a.e.c.), Berlim (1350a.e.c.), Harris (1167a.e.c.) e Cairo (300a.e.c.), além do Documento de Edfu (150a.e.c.). Esses papiros possuem diversos cálculos matemáticos com sistemas de medidas, áreas e volumes diversos, equações de 1º e 2º graus, progressão aritmética e geométrica, operações fundamen-tais da Matemática (adição, subtração, multiplicação, divisão, po-tenciação e radiciação), divisão proporcional, frações, geometria, 184EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAcálculos diversos e inclusive o Teorema do Triângulo Retângulo, conhecido hoje como Teorema de Pitágoras. Entre esses documentos, dois deles são os mais importantes para a compreensão da Matemática egípcia, que são os papiros de Ahmes (ou Rhind) e de Moscou (ou Golenischev), compostos por exposições de problemas e suas resoluções. Com esses papiros, foi possível compreender o sistema de numeração egípcio. De acor-do com Eves (2004, p.72), “todos os 110 problemas incluídos nos papiros Moscou e Rhind são numéricos, e boa parte deles é muito simples. Embora a maioria tenha origem prática, há alguns de na-tureza teórica”. O autor também diz que, desses problemas, vinte e seis são geométricos, com fórmulas de mensurações referentes a cálculos de áreas de terras e também com volumes de grãos. O Papiro de Ahmes possui 84 problemas de Aritmética e Geo-metria, com medidas aproximadas de 5 m de comprimento e 0,30 m de altura, que, segundo Boyer e Merzbach (2012, p. 30), é a “fonte principal de nosso conhecimento da Matemática do Egito antigo”. The British Museum (2023) diz que:O papiro é provavelmente um livro de matemática, usado pe-los escribas para aprender a resolver problemas matemáticos particulares escrevendo exemplos apropriados. O texto inclui oitenta e quatro problemas com tabelas de divisões, multi-plicações e manipulação de frações; e geometria, incluindo volumes e áreas.185JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOFigura 5 – Papiro de AhmesFonte: site Wikimedia Commos (2023).7Existiram muitos outros papiros egípcios contendo Matemáti-ca que se perderam durante o tempo por diversos motivos. Apesar de atualmente estar escrito em livro, existe também parte do pa-piro em que Euclides de Alexandria escreveu a obra mais impor-tante da Matemática que ultrapassou séculos, conhecido como Os elementos, escrito por volta do ano 300a.e.c. Euclides deAlexandria nasceu provavelmente no bairro de Racótis, cidade de Alexandria (Egito, África) por volta do ano 330 a.e.c. É considerado o “Pai da Geometria”, e sua obra mais célebre foi o livro Os elementos, um conjunto com 13 livros (na época, 13 rolos de papiros), que, de acordo com Garbi (2006, p. 49), é “o mais antigo livro de Matemática ainda em vigor nos dias de hoje, 7 Ver em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Egyptian_A%27h-mos%C3%A8_or_Rhind_Papyrus_(1065x1330).png.186EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAuma obra que somente perde para a Bíblia em número de edições e, para muitos, o mais influente livro matemático de todos os tem-pos”. Ou seja, o livro mais antigo e mais importante na história da Matemática, o segundo livro mais vendido no mundo, foi escrito por um africano e em solo africano.Assim como Euclides, outras pessoas importantes na história da Matemática são africanas, mas são consideradas gregas. Teo-doro e Eratóstenes, ambos da cidade de Cirene (Líbia), Hipátia de Alexandria (Egito) e Claudio Ptolomeu (Ptolemais Hermiu ou Pelúsio, ambas cidades no Egito), foram pessoas de grande impor-tância na Matemática, Astronomia e Filosofia. O legado roubado existe também nas obras dos gregos Tales de Mileto, Pitágoras, Platão, Arquimedes, entre diversos outros que viveram há déca-das no Egito, aprenderam Matemática no continente africano, e ganharam fama e teoremas em seus nomes. Grande parte das pessoas citadas estudaram ou lecionaram na primeira, a mais importante da Antiguidade, uma das mais im-portantes da história e a mais duradoura universidade do mun-do: a Universidade de Alexandria, composta pelo famoso museu e biblioteca, lar das mentes mais brilhantes da Antiguidade e do grande progresso da Matemática e das Ciências. Trata-se da primeira instituição do gênero e sua organização e objetivos logo vieram a se assemelhar ao das universidades atuais. Supostamente era muito bem provida de recursos e seu projeto agradável e bem elaborado continha salas de aula, laboratórios, jardins, bibliotecas bem aparelhadas e habita-ções. O fulcro da instituição era a grande biblioteca, que por muito tempo foi o maior repositório de registros culturais de todo o mundo e que dentro de quarenta anos após sua funda-ção ostentava mais de 600 000 rolos de papiro (Eves, 2004, p.166-167).187JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOA África também é berço das cinco primeiras universidades do mundo. A Universidade de Alexandria teve vigência por qua-se mil anos, provavelmente entre 295a.e.c. até 641e.c.8, ou seja, durou mais tempo do que qualquer outra universidade existente até hoje. Após, o continente inaugurou a Universidade de Ez-Zi-touna (ano de 737, Tunísia), a Universidade Al-Karaounie (ano de 859, Marrocos), a Universidade de Al-Azhar (ano de 975, Egito) e a Universidade de Sancoré (ano de 989, Mali), ensinando Matemáti-ca, Literatura, Ciências, Medicina, Jurisprudência e o Islamismo.Há diversas outras histórias invisibilizadas na Matemática, nas Ciências e em diversos outros campos do conhecimento hu-mano, quando se trata de África. O continente africano foi berço também de grandes reinos e impérios que exigiram cálculos ma-temáticos complexos, e até grande parte da chamada Matemática Árabe (que contribuiu muito para o desenvolvimento científico) ocorreu em solo africano. Instituições de ensino, Matemática e Ciência se desenvolveram e se desenvolvem ao longo dos tempos nesse continente e é necessário apresentar isso para a sociedade, na qual a escola tem o papel primordial nessa luta.Considerações finaisTrabalhar com a verdadeira história da Matemática é muito mais do que contribuir com a Lei nº 10.639/03: é mostrar às nossas crianças, adolescentes e pessoas adultas que a África possui muito conhecimento científico desde os primórdios da humanidade. Predomina na consciência ocidental um estereótipo da África como continente escuro e obscuro, abrigando tribos primitivas, imóveis no tempo e no espaço, com suas culturas arcaicas e 8 Estamos também mudando a forma colonial “depois de Cristo” (d.C.) para “era comum” (e.c.).188EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAestáticas [...] A realidade histórica é o contrário desse estereó-tipo. Desde seus primórdios, a África tem sido o palco de inten-sas movimentações, migrações, trocas comerciais e culturais. Trata-se de um fenômeno ocorrido não apenas no território continental como também no exterior. Com efeito, o africano e sua cultura se fizeram presentes em todos os cantos do mundo antigo (Nascimento, 2008, p.80).Complementando a frase acima, a cultura africana se faz pre-sente em todos os cantos do mundo até hoje, e a Matemática é uma delas. Podemos afirmar que somos descendentes de rainhas, reis, grandes reinos e impérios, assim como nossos ancestrais criaram e desenvolveram a Matemática, Astronomia, Medicina, entre diversos outros ramos do conhecimento humano de forma fantástica. Devemos mostrar essa verdadeira história para os nos-sos estudantes, trazendo a representatividade, elevando sua au-toestima e fazendo perceberem o quanto são capazes de produzir Matemática também. O primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel (2012 apud Gerdes, 2012, p.93), afirmou que essa ciência é apresentada com uma criação e capacidade exclusiva dos homens brancos” e que “as capacidades mate-máticas dos povos colonizados foram negadas ou reduzidas à memorização mecânica.Machel (2012 apud Gerdes, 2012, p.93-94) defendeu uma re-afirmação-matemático-cultural, que “é necessário encorajar a compreensão de que os povos africanos foram capazes de desen-volver Matemática no passado, portanto, reganhando confiança cultural, serão capazes de assimilar e desenvolver a Matemática de que necessitam”.É necessário apresentar novas perspectivas no ensino da Ma-temática. Além da história, há outras estratégias de ensino que 189JEFFERSON DOS SANTOS TODÃOpodemos utilizar, como jogos e brincadeiras, e, junto com essas es-tratégias, apresentar os territórios, histórias e culturas dos povos africanos. Também podemos trabalhar fatos matemáticos com li-vros, textos e reportagens que evidenciam o protagonismo do povo africano e das pessoas pretas em todo o mundo, inclusive no Brasil.A história da Matemática e as contribuições dos povos africanos nas Ciências não se esgotam por aqui, mas por este resumo percebe-mos que o apagamento histórico, assim como o racismo científico, é um grande projeto de poder eurocêntrico e que precisamos quebrar esse ciclo hegemônico por meio de uma educação decolonial.ReferênciasASANTE, M. K. Os filósofos egípcios: vozes ancestrais africanas de Imhotep à Akhenaten. São Paulo: Ed. Ananse, 2022.BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Institui a inclu-são no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras provi-dências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 140, n.8, p.1, 10 jan. 2003. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data =10/01/2003&totalArquivos=56. Acesso em: 5 jul. 2023.BOYER, C. B.; MERZBACH, U. C. História da Matemática. São Paulo: Blucher, 2012.D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. EVES, H. Introdução à história da matemática. Tradução: Hygi-no H. Domingues. Campinas: Ed. UNICAMP, 2004.190EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAGARBI, G. G. A Rainha das Ciências: um passeio histórico pelo ma-ravilhoso mundo da Matemática. São Paulo: Livraria da Física, 2006.GERDES, P. Etnomatemática: cultura, matemática, educação. Maputo: Lulu, 2012. (Colectânea de Textos 1979-1991).IFRAH, G. Os números: história de uma grande invenção. São Paulo: Globo, 1998.KI-ZERBO, J. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, 1972.MACHADO, C. E. D.; LORAS, A. B. Gênios da humanidade: tec-nologia e inovação africana eda Nigéria, chegando à seguinte máxima:Os povos africanos, tanto mulheres quanto homens, são res-ponsáveis pela considerada ‘Matemática grega’ e/ou ‘Ma-temática ocidental’; portanto, tudo que ensinamos e apren-demos hoje no Ensino Básico foi uma produção de nossos ancestrais.Assim, o autor vai enumerando os eventos ancestrais que se constituíram como os fundamentos da Matemática na África, numa potente pesquisa quase arqueológica que vai do homo habilis, passando pelo Osso de Lebombo, o Bastão de Ishango, a revolu-ção agrícola (há 11 mil anos), o apogeu científico de Kemet (atual Egito) e seus papiros, até suas reflexões atuais, ancoradas na Lei nº10.639/03, que defendem o ensino afrorreferenciado da Matemá-tica nas escolas, por meio de outras perspectivas históricas e cientí-ficas e estratégias como jogos e brincadeiras de influência africana.Da Matemática à Astronomia, o capítulo “O ensino e a divul-gação da Astronomia e da Física em perspectiva antirracista”, do astrofísico e pós-doutor Alan Alves-Brito, projeta luz sobre esses do-mínios pelo viés do pensamento africano, questionando as “culturas ocidentais” que detêm o poder no campo astrofísico, através do mo-nopólio de homens brancos, geralmente do Sul e Sudeste do Brasil.A partir desse prognóstico, o autor questiona como abordar questões étnico-raciais no contexto da Física e da Astronomia (ci-ências fundamentais), já que estão historicamente alicerçadas em projetos coloniais e hegemônicos, privando negros/as de acesso ao desenvolvimento científico e tecnológico. Como possíveis respostas, ações em âmbito universitário, na graduação e pós-graduação, vêm abordando perspectivas negras e indígenas no ensino e divulgação da Física e da Astronomia, como publicações de livros temáticos 23ERICO JOSÉ SOUZA DE OLIVEIRApara ampla disseminação no Ensino Básico, escolas indígenas e quilombolas, assim como artigos científicos, dissertações e teses que discutem a Educação Antirracista nas Ciências.A ressignificação de conceitos básicos, como interculturalida-de, relações étnico-raciais, cosmologias racializadas e transdiscipli-naridade, faz parte desse giro epistêmico promovido pelo tripé En-sino, Pesquisa e Extensão no combate ao epistemicídio científico, a partir de referenciais negros e indígenas e suas contra-histórias de perspectiva amefricana, seus pressupostos e valores civilizatórios.O “Ensino de Química numa perspectiva negrorreferencia-da”, da dupla Anna Canavarro Benite e Marysson Jonas Rodrigues Camargo, professora e professor da área, consubstancia a discus-são curricular como manifestação de experiências formativas nos espaços educacionais formadores de identidades e posicionamen-tos sociais, junto à dificuldade de promoção de um pensamento curricular diverso, democrático e antirracista.A partir da análise do currículo em Química, a autora e o au-tor fazem um retrospecto das Ciências e do cientificismo tecno-lógico em detrimento de outros valores que são subalternizados pelos dogmas da cultura chamada tecnopólio, uma das derivações contemporâneas da lógica binária da modernidade, que exclui o que não faz parte de suas convicções materialistas e capitalistas. Dessa linha de ações colonialistas, vem o racismo científico, que imputa a negros/as a inferiorização racial, intelectual e científica, que se reflete no sistema educacional como norma, gerando uma série de violências, exclusões e extermínios.A proposta da autora e do autor é, portanto, a educação em Química como ciência e tecnologia que agrega o pensamento abs-trato e experimental enquanto saber histórico, simbólico e social-mente negociado no meio social, deixando de ser um poderoso 24EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAinstrumento de injustiça, opressão e racismo e resistindo às ne-crocorporações que agenciam mortes e negligenciam programas de proteção às sociedades subalternizadas.Carolina Cavalcanti do Nascimento, doutora em Educação Científica e Tecnológica, nos presenteia com o capítulo “O que o ensino de Ciências tem a aprender com a Educação Escolar Qui-lombola?”, denunciando como as Ciências e seus ensinamentos produzem e reproduzem o racismo, através do silenciamento de identidades negras e indígenas em suas elaborações práticas e co-tidianas.Situando sua experiência na educação quilombola em Santa Catarina, a autora enfatiza como as experiências nos quilombos contribuem para o diálogo entre a educação em Ciências da Natu-reza e Matemática, impulsionando o questionamento das metodo-logias e práticas docentes alinhadas à colonialidade e à educação hegemônica.A valorização de saberes, tradições, ancestralidades preser-vadas nas comunidades remanescentes quilombolas encaminha e demanda propostas de ensino com dinâmicas locais, além de todo um repensamento sobre fundamentos e metodologias de ensino, a partir das epistemologias próprias de cada quilombo, gerando um ambiente escolar intercultural no qual são promovidas as noções de cultura, diferença, identidade e diversidade.No texto “Ciência, tecnologia e inovação africana”, do profes-sor, autor e pesquisador Carlos Eduardo Dias Machado, a história dos/as primeiros/as humanos/as, de suas descobertas e da produ-ção de conhecimento é traçada em forma de tópicos que incluem temas como Educação, Astronomia, Metalurgia, Medicina, Agri-cultura e Pecuária, Tecnologias Têxteis, Tecnologias Marítimas, Arquitetura, Sistemas de Comunicação e Comércio, comprovando 25ERICO JOSÉ SOUZA DE OLIVEIRAcomo a África, ao longo de sua história, é construtora de conhe-cimentos complexos e substanciais para a humanidade, sendo ne-cessária sua difusão e valorização.O professor e pesquisador Renato Emerson dos Santos, em seu capítulo intitulado “Por um ensino de Geografia antirracista”, referenda uma prática de transformação social em busca de uma sociedade mais igualitária a partir das reflexões críticas que a Ge-ografia pode estabelecer em seu processo de ensino-aprendizagem e suas relações com os conceitos de raça, classe, gênero, cultu-ra, espiritualidade etc. Mais uma vez, os questionamentos sobre o currículo se fazem presentes, já que ele é uma ferramenta de pro-dução de conhecimentos, de poder e controle social, interferindo em toda uma rede de relações socioculturais e político-econômi-cas, podendo se tornar uma ferramenta de combate ao racismo.Afirmando que a Geografia é uma ciência da ação, o autor a localiza como maneira de refletir sobre comportamentos e identi-dades, abrangendo, inclusive, a Educação Ambiental, ao invés da visada cartesiana que divide a sociedade entre natureza e huma-nidade, exatamente o contrário das cosmopercepções africanas e indígenas, que consideram o ser humano e a natureza partes de um todo. Para o autor, a criação de um currículo antirracista na Geogra-fia visa a uma releitura crítica dos padrões autoritários das relações de poder e uma ciência comprometida com essas transformações socioculturais que eliminem as reproduções hierárquicas e racistas que relegam a África e suas diásporas ao subjugo do eurocentrismo.O doutor em Direito Tiago Silva de Freitas nos apresenta o “Ensaio sobre perspectivas teórico-críticas da colonialidade para uma democracia racial a partir da realidade brasileira”, no qual afirma categoricamente que é preciso uma luta anticolonial de en-frentamento e combate às mazelas da colonização para se poder edificar uma sociedade efetivamente democrática. 26EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAO autor nos traz fatos da história do Brasil para exemplifi-car como o pensamento colonialista impede a soberania do país e continua mantendo as desigualdades do projeto moderno/capi-talista desde o tempo da escravidão, exaltando em contradição a EXUberância da perspectiva iorubá como meio de enfrentamento contra-hegemônico, cuja memória ancestral é uma das potentes armas de resistência e afirmação das culturas negras no Brasil.Por fim, temos o texto “Elementos para um programaafrodescendente. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2017.NASCIMENTO, E. L. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.RONAN, C. A. História ilustrada da Ciência I: das origens à Grécia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.SILVÉRIO, V. R.; ROCHA, M. C.; BARBOSA, M. S. Síntese da coleção história geral da África: pré-história ao século XVI. Brasília, DF: UNESCO, MEC: Ed. UFSCar, 2012.THE BRITISH MUSEUM. The Rhind Mathematical Papyrus. 1550 a.C. 1 Papyrus. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA10057. Acesso em: 14 jul. 2023.O ensino e a divulgação da Astronomia e da Física em perspectiva antirracistaAlan Alves-BritoIntrodução A Astronomia e a Física são duas ciências básicas que se entrela-çam na história da humanidade. São duas ciências fundamentais para nos ajudar a pensar o mundo e as relações (astro)físicas do Universo em escalas distintas: a do muito grande (relatividade ge-ral), associadas, entre outros, às estrelas, galáxias e aglomerados de galáxias; e a do muito pequeno (mecânica quântica), ligada aos átomos e às partículas que constituem a tabela periódica dos ele-mentos químicos.De acordo com a teoria padrão mais atual, ou seja, a que me-lhor explica cientificamente a origem e evolução do Universo – o Modelo Lambda (Λ: energia escura) CDM (do inglês, Cold Dark Matter: matéria escura fria) –, o Universo é constituído por três componentes principais: matéria bariônica ou matéria lumino-sa (5%), matéria escura fria (27%) e energia escura (68%). Não conhecemos ainda a origem de 95% do Universo, ou seja, a soma das matérias fria e escura. Apenas cerca de 5% da porção total 192EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAdo Universo é relativamente bem descrita, embora com muitas perguntas esperando por respostas a partir de estudos contem-porâneos (Alves-Brito; Cortesi, 2021; Alves-Brito; Massoni, 2019). Historicamente, a Física e a Astronomia têm nos ajudado a definir o que é ciência e como ela é desenvolvida do ponto de vis-ta teórico, observacional e experimental a partir de modelos, os quais são construídos para descrever da forma mais aproximada possível aquilo que denominamos realidade física. Em outras pa-lavras, essas duas ciências básicas estão amplamente conectadas às questões mais basilares da Filosofia e da Epistemologia1 da ci-ência, influenciando o pensamento da humanidade desde que as primeiras pessoas passaram a olhar para o céu e a formular as grandes questões que nos inquietam há milênios, ligadas não ape-nas às nossas origens, mas também às especulações sobre o desti-no do Universo.No entanto, apesar de sua importância na atualidade, que nos impacta diretamente em diferentes contextos de nossas organiza-ções sociais e políticas a partir de suas grandes áreas –mecânica clássica, termodinâmica e mecânica estatística, eletromagnetis-mo e fotônica, mecânica relativística, mecânica quântica, física atômica e física molecular, óptica e acústica, física da matéria condensada, física de partículas de alta energia e física nuclear –, a Física tem se mantido por muito tempo, no que chamamos de culturas ocidentais, como uma aventura identitária bem marcada. Isso também acontece com a Astronomia. Sabemos, por exemplo, que as pessoas trabalhando em Física e em Astronomia são majoritariamente homens, pessoas brancas heterossexuais e cisgêneras, oriundas de classes sociais “bem nascidas”. No caso do 1 Parte da Filosofia que se preocupa especificamente com a forma com a qual se concebe e se produz conhecimento.193ALAN ALVES-BRITOBrasil, vale ainda destacar a sobrerrepresentação de físicas/os do Sul e do Sudeste na principal organização científica do país, a So-ciedade Brasileira de Física – SBF (Anteneodo et al., 2020). Gosto de ressaltar que, até aqui, a Física e a Astronomia (e os seus ensi-nos e articulações em espaços outros de interação com as pessoas) têm sido uma “ação afirmativa”2 para pessoas brancas, homens em maior proporção. Essa representação limitada da sociedade brasileira, em um dos espaços científicos mais fundamentais para a construção da ciência e para a formulação de algumas das per-guntas mais básicas sobre a origem e a evolução do Universo, não pode ser considerada fruto de um dado biológico. Alternativamente, ela precisa ser interpretada como consequ-ência direta de como as nossas relações sociais, políticas, econô-micas e culturais são construídas no país, a partir da forma como o nosso racismo3 tem sido estruturante há séculos (Munanga, 2019). Essa é a premissa básica do presente texto – o racismo não está desarticulado do colonialismo4 e do eurocentrismo5 (Quijano, 2000), que, por sua vez, são a espinha dorsal e intelectual da defi-nição moderna e contemporânea de Física e Astronomia. 2 No sentido literal, é um conjunto de políticas sociais de combate a discriminações de clas-se, gênero, raça, espiritualidade, entre outros, que buscam promover a participação de grupos minoritários em espaços de poder nas estruturas da sociedade, entendendo-as necessárias para dirimir processos históricos de exclusão enfrentados por parte significativa da população brasileira. Aqui o termo foi empregado para lembrar que, alternativamente, uma pequena par-te da população brasileira tem sido privilegiada pelas estruturas de exclusão. 3 Ideologia dominante no Brasil que coloca as pessoas negras e indígenas em posição de inferioridade em todos os aspectos da vida social com base na ideia de que a raça é um fator determinante nessas relações. 4 Aqui definido como o sistema de dominação europeia sobre os países hoje reunidos no que se denomina “América Latina”, que envolve complexas relações de hierarquização entre as dimensões do ser, do saber e do poder.5 Designação da centralidade e da superioridade da visão europeia sobre as outras perspecti-vas de mundo de outros povos. Aqui é visto como sinônimo de colonialismo e racismo. 194EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAEntendemos que essas questões reverberam a forma como o en-sino de Física e de Astronomia se estrutura e se organiza no chão das escolas, não somente no que tange à infraestrutura, mas tam-bém no que concerne às questões pedagógicas das escolas. Esses aspectos tornam-se ainda mais graves quando levamos em conta o ensino de ciências físicas no contexto de projetos diferenciados de educação, como a educação escolar quilombola e indígena (Alves--Brito, 2021b). Infelizmente, na Educação Básica e no Nível Supe-rior, o ensino de Física e de Astronomia passam por variados desa-fios (Slovinscki, 2022; Slovinscki; Alves-Brito; Massoni, 2021, 2023).Como então abordar as questões étnico-raciais em suas in-tersecções no contexto de duas ciências fundamentais, como a Física e a Astronomia, que estão historicamente alicerçadas em projetos hegemônicos de construção de ciência, fundamentadas na ideia de desenvolvimento científico e tecnológico da huma-nidade forjada na Quarta Revolução Industrial? (Alves-Brito, 2021b; Andery et al., 2012) A partir principalmente das ações que temos desenvolvido no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul via programas de ensino e de pesquisa em nível de graduação e pós-graduação, bem como de programas de extensão, o nosso principal objetivo no presente texto é apresentar reflexões sobre como os ensinos de Física e Astronomia podem contribuir para a superação do racismo à brasileira, por meio da promoção da equi-dade racial na Educação Básica. Daremos ênfase para os trabalhos desenvolvidos até aqui no nosso grupo, com foco no Ensino e na Divulgação de Física e Astronomia no contexto de comunidades negras, quilombolas, indígenas, ribeirinhas e periféricas6, os quais 6 A periferia é, para nós, o centro das soluções e o lugar das potências inovadoras. Desloca-mos aqui o centro para as periferias. 195ALAN ALVES-BRITOtêm sido articulados para nos ajudar a construir a categoria cos-mologias racializadas (Alves-Brito,2021a).O ensino e a divulgação da Física e da Astronomia em perspectivas negras e indígenasAo longo dos últimos anos, temos, sobretudo – algumas pessoas negras que trabalham na Física e na Astronomia –, nos debruçado na construção de um corpus de conhecimento diferenciado nas ciências físicas que leve em conta literaturas e dispositivos cul-turais negrorreferenciados ou pautados nas formas de pensar das populações invisibilizadas e exterminadas dos processos de elabo-ração do pensamento, como as populações indígenas, quilombo-las, ribeirinhas e periféricas. Entendemos, tão logo adentramos o sistema universitário brasileiro, que a nossa chegada representa uma conquista das nossas mais velhas e dos nossos mais velhos que vieram antes de nós. Mesmo que não tenhamos acessado a graduação por meio de “ações afirmativas”, a nossa chegada e a nossa permanência nos sistemas de graduação, pós-graduação e mesmo de pós-doutorados mundo afora representam conquistas coletivas. É nesse sentido que os livros apresentados na Figura 1 foram construídos. Cada um deles, a seu modo, traz um pouco dos movi-mentos cosmopolíticos7 que envolvem pensar as realidades negras e indígenas do país a partir de lógicas que desafiam o velho axio-ma do sistema eurocêntrico de organização do projeto moderno e contemporâneo de ciência – “penso, logo existo”. As perspectivas negrorreferenciadas ou aquelas outras baseadas em cosmologias indígenas ampliam a perspectiva de “pensar para existir”, pois 7 Termo usado para expressar as formas como resolvemos conflitos entre-mundos, entre realidades distintas da vida.196EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAsuas formas de pensar envolvem a dimensão do corpo interpretada como território e pensamento que só fazem sentido quando acio-nados pelas cosmopercepções8. Figura 1 – Livros de pesquisa, educação, literatura e divulgação em ciências produzidos de 2019 a 2022 Fonte: Universidade Federal do Rio Grande do Sul ([201-]).9O primeiro livro, da esquerda para a direita na linha superior da Figura 1, denomina-se Astrofísica para a Educação Básica (Edi-tora Appris, 2019). Trata-se de um ensaio científico sobre a origem dos elementos químicos no Universo, abordando aspectos físicos e astrofísicos em torno da formação e evolução do Universo e, em particular, das estrelas. Ele traz, em linguagem acessível, os pro-cessos físicos envolvidos na nucleossíntese primordial e estelar, mas sem deixar de tangenciar questões históricas, filosóficas e epistemológicas da ciência. Esse livro foi pensado sobretudo para ser uma tecnologia social no âmbito do ensino de ciências (Física 8 Não trabalhamos apenas com a ideia de cosmovisão, mas sim no seu sentido mais amplo, que envolve outros sentidos e, por isso, a cosmopercepção melhor traduz as experiências que aqui estão demarcadas.9 Ver em: https://www.ufrgs.br/zumbidandara/ e www.if.ufrgs.br/~aabrito para mais detalhes.197ALAN ALVES-BRITOe Astronomia) no diálogo com outras áreas (História, Química, Biologia, Filosofia), com potencial desenvolvido no chão das es-colas públicas vistas e interpretadas pelo primeiro autor do livro como um território negro (Alves-Brito, 2022d), frequentado majo-ritariamente por pessoas negras.A motivação primeira ao escrever o livro era tentar respon-der à pergunta fundamental de por que teríamos de esconder das pessoas, principalmente de estudantes e professores da Educação Básica (território negro) aspectos profundos e poéticos sobre a origem dos elementos químicos no Universo. Há, nesse sentido, uma subversão ao fato de que é ainda negado às escolas públicas acesso de conhecimentos focados em Física e Astronomia mo-derna e contemporânea. A forma como as escolas públicas e as escolas diferenciadas indígenas e quilombolas são afetadas pela falta de professores com formação específica em Física e Astrono-mia, bem como pela falta de outros elementos de infraestrutura, bibliotecas, livros, Internet, computadores e mesmo laboratórios de ciências físicas ou visitas programadas a museus, observatórios e planetários ao longo do ano letivo, é interpretada por nós como uma marca do racismo institucional (Alves-Brito, 2022b). Os livros Antônia e a caça ao tesouro cósmico (Editora Appris, 2019) e Antônia e os cabelos que carregam os segredos do Universo (Editora Appris, 2020) estão voltados, respectivamente, para os públicos com idades acima e abaixo de 10 anos. Ambos trazem questões repletas de curiosidade da menina Antônia, negra nor-destina, que tem um cabelo crespo que aponta para o alto, para a sua ancestralidade, e acompanha a expansão acelerada do Uni-verso. Trata-se de livros negrorreferenciados, que trazem formas outras de discutir e refletir, em casa ou na escola, questões básicas de várias áreas do conhecimento – Humanas, Exatas, Natureza 198EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAe Linguagens – que se conectam com as experiências da meni-na Antônia. As capas dos livros são, por elas mesmas, formas de combater as sub-representações de crianças negras nas Ciências Exatas; meninas e meninos negros não apenas podem se interes-sar por Astrofísica e por carreiras científicas, como são capazes de estudar e se realizarem em qualquer área do conhecimento. O livro Bará (Editora Pragmatha, 2021) é um livro conto--mapa-histórico. Ele traz ilustrações de lugares considerados territórios ocupados por maioria de pessoas negras no passado recente da cidade, mas que, por conta da especulação imobiliá-ria, uma das facetas do racismo ambiental, hoje são considera-dos espaços embranquecidos. A história de Bará (palavra ioru-bana para a humanidade que nos habita) é ela mesma um mapa dos quilombos urbanos de Porto Alegre. Ao longo das palavras escritas na história de Bará, cosmologias negras e alguns de seus principais articuladores no Brasil e também no Rio Grande do Sul são apresentados.Os livros Astro-antropo-lógicas: oriki das matérias (in)visíveis (Editora Marcavisual, 2021), versões português/inglês, trazem vá-rias questões sobre Física e Astronomia no contexto intercultural, em que três cosmologias – matriz africana e afro-brasileira; matriz indígena e matriz europeia – são colocadas lado a lado para um diálogo intercultural entre os diferentes saberes. Os livros permi-tem trabalhar várias ideias, conceitos e questões sociocientíficas e artísticas envolvendo Física e Astronomia a partir de referenciais negros e indígenas. Conceitos como cosmofobia (Santos, 2015) são explicados ao longo do texto. Kayode: o caçador de histórias (Editora Malê, 2021) sinteti-za um romance negrorreferenciado em que Física, Astronomia e cultura iorubana se mesclam para criar novos imaginários 199ALAN ALVES-BRITOsobre as cosmologias africanas e afro-brasileiras. Há, no texto, um lirismo nagô que se mescla à ficção científica, mas tudo pautado em conhecimentos demarcados em diferentes áreas dos conhecimentos. E, por fim, o livro Zumbi-Dandara dos Palmares: desafios estru-turais e pedagógicos para a educação escolar quilombola no Brasil do século XXI (Editora Pragmatha, 2021). Além de trazer resulta-dos e textos de pesquisa em torno da educação escolar quilombola, o livro apresenta jogos, bem como experiências didáticas no âm-bito da Física e da Astronomia Cultural. Todos os livros apresen-tados na Figura 1 articulam, sobretudo, referenciais teóricos, me-todológicos e epistemológicos de pessoas negras e indígenas. Os livros têm o objetivo principal de combater o racismo epistêmico e institucional (Alves-Brito, 2022b).Para além dos livros, temos escrito artigos científicos, desen-volvido teses e dissertações e uma série de projetos de extensão e divulgação em ciências físicas que têm buscado colocar em práti-ca os fundamentos da orientação dos Movimentos Sociais Negros no que tange à educação em ciências antirracista: não podemos apenas desenvolver teorias, mas é de suma importância colocar em prática ações que visem de(s)colonizar (Rosa;Alves-Brito; Pi-nheiro, 2020; Pinheiro; Rosa, 2018, 2022) ou contracolonizar (San-tos, 2015) as ciências (exatas) e os conhecimentos. A Figura 2 sumariza alguns dos principais pontos que temos pensado para fazer valer o ensino de Física e de Astronomia em perspectivas negrorreferenciadas e indígenas. 200EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAFigura 2 – O ensino de Física e de Astronomia em perspectiva afro-indígena Fonte: Ciência Hoje (2022).10Como se pode notar da Figura 2, as Diretrizes Curriculares Na-cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais – DCNERER 10 Ver em: https://cienciahoje.org.br/artigo/o-ensino-de-fisica-e-astronomia-pela-perspectiva--afro-indigena/. 201ALAN ALVES-BRITO(Brasil, 2003, 2004, 2008) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola – DCNEEQ (Brasil, 2012a) e Indígena – DCNEEI (Brasil, 2012b) são os documentos que alicer-çam os fundamentos teóricos e epistêmicos do que temos discu-tido no Ensino e na Divulgação de Física e Astronomia no Brasil. Para uma discussão detalhada de cada um dos 24 itens apresen-tados na Figura 2, sugerimos a leitura de Alves-Brito (2022a). As DCNERER, DCNEEQ e DCNEEI recomendam que as aulas de Ci-ências, Física e Astronomia incluídas, não sejam apenas espaços para discutir conteúdos. É preciso também se apropriar das lutas e discussões pri-mordiais pautadas pelos Movimentos Sociais (Gomes, 2017; Mun-duruku, 2012). As nossas investigações em Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) têm nos mostrado como as alteridades de pessoas negras e indígenas são ainda subalternizadas nas ciências físicas (Alves-Brito; Alho, 2022). A Astronomia Cultural, uma das áreas de investigação da Astronomia Moderna, é então retomada em nosso trabalho para questionar e ressignificar o seu papel his-tórico e epistemológico em sinergia com a luta antirracista e com os valores africanos e afro-brasileiros (Alves-Brito; Alho, 2022; Al-ves-Brito; Alves, 2022; Alves-Brito; Bootz; Massoni, 2018).Temos buscado, à luz de referenciais negros, ressignificar con-ceitos básicos como interculturalidade, Educação Antirracista, re-lações étnico-raciais e cosmologias racializadas, os quais são mais bem desenvolvidos ao longo das nossas publicações já citadas no presente texto. Dessa forma, pensar sobre a Física e a Astronomia a partir do arcabouço das relações étnico-raciais implica revisitar-mos diversas áreas da produção científica, tecnológica, educacio-nal e cultural dessas duas ciências básicas, conforme sintetizado no Quadro 1.202EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAQuadro 1 – Dimensões do ensino de Física e Astronomia na perspectiva da ERERÁrea DescriçãoContribuições dos Movimentos Sociais NegrosHistória Estudo e reconhecimento dos efeitos históricos do racismo na construção da ciência moderna e contemporânea e da estruturação da sociedade brasileira.Filosofia Aprofundamento de questões éticas que envolvem a existência negra/indígena; reformulação do conceito de humanidade; ampliação das perspectivas filosóficas para incluir as matrizes africanas, afro-brasileiras e indígenas.Epistemologia Discussão do racismo epistêmico; enfrentamento ao apagamento das contribuições de pessoas negras à história da ciência.Sociologia Discussão e aprofundamento de questões sociocientíficas, entendendo os limites da produção do conhecimento científico e tecnológico e os seus impactos sociais.Política Garantia das interações entre a sociedade e os sistemas públicos de governo, fortalecendo as tomadas de decisão para o uso político da ciência e da tecnologia no combate às “políticas de morte” (físicas e epistêmicas) que afetam as pessoas negras e indígenas. Psicologia Fortalecimento da autoestima de pessoas negras tendo em vista o combate ao racismo e a criação positiva e possível de modelos negros e indígenas de cientistas. Economia Avaliação crítica e operante das condições econômicas para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia que impactam no jeito de ser e de viver de pessoas negras e indígenas.Linguagens Fortalecimento das questões estéticas, criativas e culturais da produção do conhecimento científico e tecnológico e de suas relações com os corpos, pensamentos e territórios negros e indígenas.Fonte: síntese elaborada com base em Gomes (2017) e trabalhos variados citados ao longo do capítulo.203ALAN ALVES-BRITOOs cursos do Programa Nacional de Mestrado Profissional em Ensino de Física (MNPEF), bem como os de Mestrado Profissional em Astronomia do país, são lugares importantes para que políti-cas educacionais em ciências físicas em perspectiva antirracista sejam colocadas em prática. No entanto, Oliveira, Alves-Brito e Massoni (2021) mostraram que, ainda que os cursos de Mestrados Profissionais (MPs) sejam cruciais, os seus cursos de Física e As-tronomia não têm contribuído para implementar os princípios das Leis nº10.639/2003 e nº11.645/2008. Somente cerca de 0,3% dos trabalhos analisados até 2019 (de um total de 1262) tinham, como foco, a ERER.Recentemente, Alves-Brito, Bootz e Massoni (2018) publica-ram uma sequência didática para discutir as relações étnico-ra-ciais por intermédio das Leis nº10.639/2003 e nº11.645/2008. Ao acionar ciências físicas negrorreferenciadas, temos a opor-tunidade de promover a Educação Antirracista em Ciências por meio do princípio da indissociabilidade entre a pesquisa, o ensino e a extensão/divulgação e de combater o epistemicídio (Alves--Brito etal., 2020; Alves-Brito, 2020; Rosa; Alves-Brito; Pinheiro, 2020). Nesse sentido, Alves-Brito e demais autores (2020) apre-sentam a história de Cheikh Anta Diop (1923-1986), um dos maio-res intelectuais do século XX. Diop trabalhou com Jean-Frédéric Joliot-Curie (1900-1958), o genro de Marie Curie (1867-1934), uma das maiores cientistas de todos os tempos. Ainda tentando trazer outros referenciais negros e indígenas para nos ajudar a pensar a história da Física e da Astronomia sob outros vieses, Alves-Brito e Macedo (2022) discutem as contra-his-204EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAtórias, ou seja, a ideia de que a história da ciência e da educação científica precisa ser contada a partir da perspectiva amefricana11. Considerações finais A implementação e a aplicação dos pressupostos da ERER (Brasil, 2004) no contexto da educação em ciências e, principalmente, das áreas de Astronomia e Física tornam-se um dos grandes desafios para o ensino, a educação e a divulgação na área. Se, por um lado, a formação inicial em Licenciatura em Física está longe do ide-al, a formação continuada também requer atenção especial, tanto com foco nos espaços formais quanto informais e não formais de ensino e aprendizagem. As teorias, metodologias e epistemolo-gias negrorreferenciadas precisam chegar ao “chão das escolas” públicas (territórios negros). Essas referências são fundamentais para tensionar o currículo, as práticas teóricas e metodológicas de forma a garantir a quebra do pacto com o racismo científico, que, apesar de ser uma pseudociência, está em voga em instituições de educação (universidades, secretarias e escolas) e de divulgação (museus, observatórios, planetários). O ensino de Física e Astronomia não é uma exceção em rela-ção aos outros campos de conhecimento. Eles precisam se abrir ao diálogo com outras áreas do conhecimento, para que juntos possam rever o conceito padrão do que é ciência, fazê-la e, mais importante, ensiná-la e divulgá-la. Estamos nesse movimento construindo interfaces de pesquisa em ensino, educação e divul-gação de Física em Astronomia que nos permitam acionar refe-11 A participação das mulheres na luta antirracista e as dinâmicas culturais que reconhecem o papel dos povos originários e dos negros africanos para a construção de uma identidade ét-nica na América Latina são acionados por Lélia Gonzalez (1935-1994) para definir a categoria político-cultural Améfrica.205ALAN ALVES-BRITOrenciais teóricos, metodológicose epistêmicos construídos a par-tir dos pressupostos e valores civilizatórios das matrizes africanas, afro-brasileiras e indígenas. É nesse sentido que pensamos que os referenciais teóricos e metodológicos negrorreferenciados são importantes para nos ajudar a criar outra compreensão do que é cultura científica e de quem são as pessoas protagonistas de seus processos de construção. Entendemos que os projetos “diferenciados” de educação em ciências (EEQ, ERER, educação escolar indígena, ribeirinha) não podem ser negligenciados desse outro jeito de ensinar e divulgar as ciências físicas. ReferênciasALVES-BRITO, A.; ALHO, K. Educação para as relações étnico--raciais: um ensaio sobre alteridades subalternizadas nas ciências físicas. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Hori-zonte, v.24, p.1-19, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epec/a/zGsLgXRmRn5CrPsbNq9kwNv/abstract/?lang=pt. Acesso em: 16 set. 2023.ALVES-BRITO, A.; ALVES, A. M. A. Cosmologias africanas e afro-Brasileiras: reflexões e estratégias didático-pedagógicas para professores e divulgadores de ciências. In: JASKULSKI, C.; SILVA, M.C. da (org.). Sobre mais uma ideia para adiar o fim do mundo: reflexões do curso de aperfeiçoamento educação para as relações étnico-raciais na educação básica. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2022. v.1, p.97-168.ALVES-BRITO, A.; BOOTZ, V.; MASSONI, N. T. 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Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro--Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União: seção1, Brasília, DF, ano145, n.48, p.1, 11mar.2008. BRASIL. Parecer CNE/CEB nº 16/2012, 05 de junho de 2012. Define diretrizes curriculares nacionais para educação escolar quilombola na educação básica. Diário Oficial da União: seção1, Brasília, DF, ano149, n.223, p.8, 20nov.2012a.BRASIL. Resolução nº 5, de 22 de junho de 2012. Define diretri-zes curriculares nacionais para educação escolar indígena na educação básica. Diário Oficial da União: seção1, Brasília, DF, ano149, n.121, p.7, 25jun.2012b.BRASIL. Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretri-zes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- -Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial da União: seção1, Brasília, DF, ano141, n.118, p.11, 22jun.2004.209ALAN ALVES-BRITOGOMES, N. L. O movimento negro educador: saberes construí-dos nas lutas por emancipação. São Paulo: Vozes, 2017.MUNANGA, K. Negritude, usos e sentidos. 4.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.MUNDURUKU, D. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012.OLIVEIRA, A.C. de; ALVES-BRITO, A.; MASSONI, N. T. Educação para as relações étnico-raciais no ensino de física e astronomia no Brasil: mapeamento da produção em mestrados profissionais (2003-2019). Alexandria: Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, Florianópolis, v.14, n.2, p.305-330, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/alexandria/article/view/76542. Acesso em: 16set.2023.PINHEIRO, B. C.; ROSA, K. (org.). 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Tese (Doutorado em Ensino de Física) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022.Ensino de Química numa perspectiva negrorreferenciadaAnna Canavarro BeniteMarysson Jonas Rodrigues CamargoIntroduçãoO currículo é a manifestação de todas as experiências formativas que vivenciamos nos espaços educativos. Para Tomás Tadeu da Silva (2012), trata-se de um fator da identidade, uma vez que nos posiciona nas múltiplas divisões sociais. Porém, enquanto fruto de relações de poder, especialmente a partir das teorias pós-crí-ticas, entendemos que o currículo pode ser hegemônico e homo-geneizante, à medida que busca reproduzir o estado de coisas que perpetua as iniquidades sociais, raciais, de gênero e sexualidade. Nesse sentido, diversos movimentos insurgiram-se ao currículo eurocêntrico, reflexo dos interesses dos detentores do poder po-lítico e econômico, em busca de um currículo que representasse democraticamente a diversidade cultural da sociedade por meio do diálogo de saberes e da interculturalidade. Nosso objetivo é dis-sertar sobre como isso pode se concretizar no ensino de Química.Um ponto de partida é reconhecer que vivemos em um país multicultural; assim, somos um conjunto de grupos e pessoas que não tem um único sistema de referência que compõe a nossa 212EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAidentidade – um modo de ser e estar no mundo com os outros. Pesquisas indicam que ao menos 5 milhões de brasileiros e brasi-leiras constituem os povos e comunidades tradicionais, ocupando cerca de um quarto de nosso território (Paraná, 2019). Esses são considerados aqueles grupos diferenciados culturalmente e que se reconhecem como tal, possuindo formas específicas de organiza-ção social e que pelo uso do território e de recursos naturais se reproduzem social e culturalmente por meio de práticas sociais ensinadas de geração a geração. Exemplos desses grupos são: indígenas, quilombolas, quebra-deiras de coco, comunidade de terreiros, ciganos, caiçaras, ribei-rinhos etc. (Paraná, 2019). Tais grupos são detentores de saberes e fazeres sobre o mundo natural e sobrenatural que denominamos de conhecimento tradicional, cuja pedagogia de ensino é a orali-dade. São saberes que não têm a pretensão de universalidade, com validade local, mas que são dinâmicos, contemporâneos, social e historicamente construídos. No processo histórico de colonização esses foram invisibilizados dos currículos escolares, que, por sua vez, sempre deu primazia à ciência como única forma de conhe-cimento válido.Urge, portanto, que concebamos um currículo mais inclusivo e que não reserve a materialização do racismo, da discriminação e do preconceito aos grupos subalternizados, aqui destacamos a população negra brasileira. Considerando a natureza desta obra coletiva, optamos por dividir o texto em mais três partes: na pri-meira, discutiremos sobre como a modernidade racista/colonial se constitui e perpetua no currículo eurocêntrico; depois aborda-remos sobre o que a Química enquanto ciência tem a ver com isso; e, por fim, apontaremos caminhos de materialização da Educação Antirracista no ensino de Química. 213ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOA modernidade racista/colonial e o currículo“A lógica do comportamento humano passou a ser a lógica da eficácia tecnológica e suas razões passaram a ser as da Ciência” (Santos; Mortimer, 2002, p.1), ou seja, a sociedade atual se baseia no cientificismo para a resolução dos seus problemas, por meio das tecnologias. Concordamos com Bazzo (2014, p.115) que as tec-nologias têm nos colocado “à mercê de sistemas interconectados, transmissores, bytes, hardware, software e, o que é grave, estamos nos sentindo subservientes à sua autoridade, moldando-nos ao seu funcionamento”.Assim, o conhecimento científico é visto como superior aos demais conhecimentos servindo como sistema de crença para uma nova cultura dogmática que encontra na tecnologia o sentido da vida, o chamado tecnopólio. Segundo Postman (1992, p.61), no tecnopólio temos “a submissão de todas as formas de vida cultural à soberania da técnica e da tecnologia”, ou seja, a técnica pensan-do pelo ser humano, que perde seus valores em detrimento de uma suposta felicidade materialista, que é realizada no consumismo.Temos a idêntica inquietação que Retondar (2008, p. 147): “quem é esse indivíduo que estaria no comando do mundo mo-derno e que foi destituído ao longo do desenvolvimento da própria modernidade?”. E ainda acrescentamos a indagação: o que é mo-dernidade? A modernidade é a invenção de um “Estado”, “nação de direitos” (o Estado colonizador, a Europa) em detrimento de Estados subalternos (colonizados). Ou seja:O que hoje chamamos de América Latina se constituiu junto e como parte do atual padrão de poder mundialmente domi-nante que se configura e estabeleceu a colonialidade e a glo-balização. Destes fatos se consolidaram o processo histórico que definiu a dependência histórico-estrutural da América 214EDUCAÇÃO ANTIRRACISTALatina e deu lugar, no mesmo movimento, a constituição da Europa Ocidental como centro mundial de controle deste po-der (Quijano, 2005 p.9).A modernidade inaugura a lógica binária, ou seja, a lógica do ou: modernidade ou barbárie, civilizada ou selvagem, branca ou negra, senhora ou escravizada, mulher ou homem, conhecimento científico ou conhecimento tradicional. E segue destruindo toda a existência que se oponha à sua. A modernidade é dogmática e o dogma adoece. Ainda que a diversidade seja condição inata, da natureza e da sociedade, a lente interpretativa da diferença, ou seja, da relação entre pessoas diversas, é produto dessa modernidade, que, por sua vez, não representa apenas uma série de revoluções que começa com a ascensão da burguesia e termina com a consolidação do ca-pitalismo como modo de produção. Conforme pontua Walter Mig-nolo (2003), há um lado obscuro na modernidade, que não cessou com o fim da Idade Moderna, a saber, a colonialidade, um padrão de poder centralizado na diferença colonial com base na raça, que, para além do colonialismo histórico, pôs em marcha a intersecção entre diversos sistemas de opressão, como racismo, o machismo, a heteronormatividade e diversas formas de inconvenientes sociais em prol da manutenção do poder ao sujeito universal (homem branco). A modernidade, assim, se relaciona de maneira desrespeitosa com a natureza e com o trabalhador. A modernidade estabeleceu a lógica binária “sociedade civil ou sociedade natural”, proclaman-do o império do indivíduo em detrimento das culturas coletivas. Assim, exclui e despreza a natureza e todo e qualquer elemento natural que não possa ser transformado em mercadoria, pois ou se é mercadoria ou se é inútil (Marés, 2017). Concordamos com 215ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOAlmeida (2019, p. 183) que “não há oposição entre modernidade/capitalismo e escravidão”, apesar de a escravidão não ser advento da modernidade. A América Latina foi tanto o espaço original como o tempo inaugural do período histórico e do mundoque hoje vivemos. “As-sim foi a primeira entidade/identidade histórica do atual sistema--mundo colonial/moderno e de todo o período da modernidade” (Quijano, 2005, p. 9). De um lado a destruição da produção in-terna e do mercado interno das comunidades independentes e de outro o secular retrocesso e estancamento dos processos de demo-cratização que a modernidade/colonial pregava. Aqui, residiu a possibilidade de construção da hegemonia histórica que permitiu aos países do centro-norte da Europa Ocidental elaborarem sua própria versão de modernidade e se apropriarem com exclusivida-de da identidade histórico-cultural do Ocidente. Munanga (2003), referência nos estudos sobre raça, racismo e identidade no Brasil, faz um apanhado histórico de como esses conceitos foram operando dentro da civilização ocidental. Diante das invasões do século XV e do contato frequente com outros po-vos, os europeus colocaram em xeque o conceito de humanidade que até então conheciam: os “outros” são bestas ou seres humanos como nós? Segundo o autor, até o século XVII, essas explicações buscavam fundamentações em bases teológicas. Depois, os argu-mentos passaram a ser científicos.A ciência, portanto, que não é neutra como difunde o mito da objetividade, sempre foi afetada por esse modelo social lançando fora pautas de interesse dos citados grupos e até mesmo criando irracionalismos que serviram de base teórica para colonização, es-cravismo e a manutenção da subalternização. Por exemplo, o racis-mo científico do taxonomista Lineu criou categorias de humanos 216EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAcom base em critérios fenotípicos e culturais que hierarquizavam as tais, colocando os brancos no topo das melhores qualidades físi-cas e culturais e os africanos na posição mais inferior. As análises antropométricas de Paul Broca tentavam justificar a pretensa su-perioridade masculina (Camargo; Benite, 2020).Por sua vez, a educação é um microcosmo da sociedade e por esta é afetada; assim, segue repetindo os seus mecanismos de ado-ecimento. A ciência que se ensina nas instituições escolares é a ciência moderna, que estabelece como norma a verdade, crítica e objetiva, independentemente dos sujeitos que a comunicam. Po-rém, é preciso ter cuidado, pois “toda verdade única é germe de violência” (Sodré, 2017, p. 26).Se a norma para o conhecimento é a “verdade” crítica e ob-jetiva, este se dá na relação sujeito/objeto, que é linear. Assim, a noção da formação escolar passa por definir pré-requisitos, habi-lidades básicas, conteúdos mínimos, seriação, etapas pelas quais os alunos têm de passar e, quanto mais conteúdo, mais saber será dominado. Portanto, “o modelo pedagógico é determinista e a-histórico uma vez que segue programas, sequências decididas a priori e que devem começar um após o outro, sem variar seguindo sem maiores perturbações” (Morin, 1996, p.284). Tais programas e sequências são elaboradas em outros lugares que não a escola, portanto não surgem do interesse ou necessidade da comunidade, que nem participa de sua elaboração. A ciência moderna tenta, a partir dessa realidade, reconstruir verdades objetivas dos fenô-menos, simplificando o real, para dominá-lo, deixando de fora do processo homens e mulheres, suas subjetividades, seus desejos, suas emoções e as relações sociais (Bonilla, 2005).Apoiamo-nos em Theodoro (2008, v. 3, p. 85) para afirmar a importância da linguagem na assunção de posições adotadas 217ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOsocialmente, que reconhecem na sociedade brasileira o racismo e o sexismo: se entendemos que somos dominados por uma cultura oriun-da da Europa, branca e elitista, não podemos esperar que nossa linguagem, transmissora dessa cultura, não reflita tal fato. [...] Da mesma maneira, nessa sociedade masculina, o discurso desfavorece as mulheres”Entendemos a linguagem em sua ampla dimensão, porém, num mundo tecnológico, sobretudo a linguagem científica e espe-cificamente em relação ao ensino de Ciências, concordamos com Francisco Junior (2008, p.405) que é totalmente desconsiderada a dimensão de C&T dos povos pré-colombianos, africanos, indígenas etc. A supervaloriza-ção de determinadas culturas, por exemplo a europeia, em detrimento de outras, é um ato discriminatório e que, amiú-de, nos passa despercebido.Desta forma, a leitura da ciência “dita” moderna que conhe-cemos implica a leitura de uma ciência europeia, branca, cristã e masculina. Para este grupo social que tem prevalência histórica na sociedade, é dirigido o sistema de ensino, os currículos e os materiais pedagógicos. Adichie (2009) aponta para o perigo de se adotar uma única história:a ‘única história cria estereótipos’. E o problema com este-reótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única histó-ria. [...] Muitas histórias importam [...] Histórias podem des-truir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.Ademais, ainda hoje, prevalece no senso comum e, infelizmen-te, nos currículos da educação científica, concepções inadequadas 218EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAe a-históricas de ciência, como a empírico-indutivista, a individu-alista/elitista, a algorítmica, a descontextualizada, dentre outras que corroboram o ensino de ciência como atividade puramente racional, de ciência como verdade no modelo didático de trans-missão/recepção, que não propiciam a formação do pensamento crítico (Cachapuz, 2005). Fato é que, transformando diferença em inferioridade, o pro-cesso de colonização teve como coluna de sustentação o epistemi-cídio. Dessa forma, a imposição cultural europeia pôs em marcha processos de subalternização de culturas não brancas, levando ao ápice do extermínio de muitas delas. Hoje, o controle de grupos hegemônicos se mantém a partir não apenas do uso da força, mas por meio dos aparelhos ideológicos do Estado, que, sob a influên-cia assimétrica de diversos segmentos e mais inclinado aos que estão no poder, reproduzem o status quo. É aí que o currículo da escola passa a ser instrumentalizado para que seja monocultural, silenciando saberes tradicionais, hierarquizando-os, sub-repre-sentando povos e comunidades tradicionais. E o que a Química tem a ver com tudo isso?Podemos dizer, com muita certeza, que ela pode guardar uma in-trínseca relação tanto com o racismo quanto com o antirracismo. Sabemos que a definição moderna de Química entende esse campo do saber como a ciência que elucida a matéria e suas transforma-ções. Além de sistematizar em linguagem específica o conhecimen-to produzido, é uma ciência concomitantemente abstrata e expe-rimental por natureza. A Química produz inovações tecnológicas, assim como está em nosso cotidiano. Todavia, enquanto construção humana, a pesquisa e a aplicação em Química atendem a determi-nados interesses daqueles que a produzem; assim, não é neutra.219ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOSendo possível a submissão às intenções e intentos de uma elite branca hegemônica, supremacista e pautada em políticas de genocídio da população negra, ou seja, um Estado cujo paradigma de suas políticas e instituições é o extermínio físico e cultural do segmento negro (Nascimento, 1978), a Química – enquanto saber histórico, simbólico e socialmente negociado e concretizado no meio social – foi e ainda pode ser um instrumento poderoso de opressão, exclusão e liquidação do nosso povo, seja por intermédio de programas de pesquisas racistas e/ou potencializando “mun-dos de morte”1 com as suas tecnologias em ação.Há fatos nos anais da história que subsidiam tal assertiva? A resposta, infelizmente, é que sim, e o Project Coast é um eloquente exemplo. O cenário era o regime segregacionista do apartheid, que se deu na África do Sul de 1948 a 1994, durante os governos do Par-tido Nacional. O projeto secreto iniciado nos anos1980 foi chefia-do pelo médico Wouter Basson (1950-) – ou Dr. Death, como ficou conhecido –, com o objetivo de criar armas químicas e biológicas, e foi encerrado apenas nos anos 1990. Tal empreitada pretendia, por exemplo, “descobrir uma bactéria que só matasse negros e a criação de um ‘agente químico’ que pudesse ser introduzido no sis-tema de distribuição de água e cujo efeito era esterilizar as mulhe-res negras” (Castelo Branco, 2003, p.247-248). Não encontramos informações sobre até que ponto as pesqui-sas do referido programa chegaram na sua busca irracional por 1 Mundos de morte, neste texto, faz referência ao texto “Necropolítica”, do camaronês Achile Mbembe (2016). Necropolítica diz respeito a uma ferramenta analítica com a qual se pode esquematizar as modalidades de extermínio perpetradas pelo Estado e suas instituições a grupos específicos, em benefício de um outro grupo hegemônico em territórios cuja história é marcada por colonialismo, racismo e escravismo. Portanto, podemos entender a expressão “mundos de morte” análoga à expressão “zona do não ser” fanoniana. O necropoder exercido nesses lugares, conforme define Mbembe (2016, p.137), tem como característica a fragmenta-ção territorial racializada, conduzindo à “proliferação dos espaços de violência”. 220EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAessas improváveis bactérias e moléculas racistas, mas pesam so-bre ele a acusação de contaminação deliberada de soldados ne-gros das forças armadas com o vírus da imunodeficiência humana (HIV), o que poderia explicar os altos índices de contágio naquele país (Castelo Branco, 2003). A utilização da Química em favor da morte de pessoas negras também tem sido ferramenta das chamadas necrocorporações, ou seja, empresas e/ou complexos industriais, nacionais ou multina-cionais, que privilegiam o lucro em detrimento da vida das pesso-as, especialmente de seus operários e da vizinhança, com instala-ções, etapas de produção e produtos que podem matar ou diminuir a qualidade de vida a curto, médio ou a longo prazo (Medeiros; Silveira, 2017). As operações corporativas da Shell Química em Paulínia (São Paulo), como aponta Ambrios (2005 apud Medeiros; Silveira, 2017, p.45), denotam esse tipo de atuação:Em 1977, a corporação iniciou suas operações na formulação e síntese de compostos organoclorados e organofosforados, com 191 empregados, sendo o processo produtivo dividido em duas unidades básicas: (1) produção de dois princípios ativos de inseticidas fosforados, denominados Azodrin e Bidrin; e (2) produção de defensivos agrícolas de Azodrin e Bidrin e outros princípios ativos importados, aplicáveis no campo, di-luídos com solventes ou impregnando pó.Todas essas substâncias são carcinogênicas e a produção de-las é proibida atualmente. Porém, como foi o referido caso da Shell Química, essas necrocorporações chegam às cidades, na maioria das vezes, com o consentimento do Estado e inclusive com subsí-dios fiscais, sendo que tanto trabalhadores quanto a população cir-cunvizinha não têm a dimensão exata dos riscos a que estão sujeitos (Medeiros; Silveira, 2017). Importa reconhecer, portanto, a injus-tiça ambiental suscetível a determinados segmentos classificados 221ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOseja por raça, classe ou outra variável, que implicam a exposição maior a riscos, por vezes, letais (Herculano, 2017; Heringer Júnior; Sparemberger, 2019). Portanto, quando falamos em racismo am-biental2, referimo-nos ao “conceito [que] diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas” (Herculano, 2017). Ir de encontro a essas injustiças não é tarefa fácil, já que se utilizam de uma violência dispersa no espaço e no tempo e que nem sempre é vista como violência3. Davies (2018, p.2, tradução nossa),4 ao analisar um caso estadunidense de poluição petroquí-mica crônica no estado da Louisiana, destacou que a poluição cria ambiguidades espaço temporais, pois os tóxicos são segregados vagarosamente, permitindo que a poluição seja quase onipresen-te, mas, ainda assim, não reconhecida, implicando mais acúmulo de riscos e danos, sendo ainda difícil “localizar responsabilidades epidemiológica e geograficamente”. Isso implica queFerimentos ambientais, como exposição química ou nuclear, podem ser ‘direcionados para dentro, somatizados em dra-mas celulares de mutação que – particularmente nos corpos dos pobres – permanecem em grande parte não observados, não diagnosticados e não tratados’ (Nixon, 2011 apud Davies, 2019, p. 1540, tradução nossa).52 “O movimento por justiça ambiental iniciou-se entre os negros estadunidenses, no início da década de 1980, no desdobramento das lutas pelos direitos civis, que, por sua vez, tiveram seu momento de ápice na década de 1960. A população negra de Warren County, na Carolina do Norte, iniciou um movimento contra a instalação de um aterro de resíduos tóxicos de PCBs (bifenil-policlorado) em sua vizinhança” (Herculano, 2017).3 Este é o conceito de violência lenta de Nixon (2011). 4 “The way toxicants are slowly secreted allows such accumulations of pollution to be ubiquitous yet unrecognized, accruing harm over time yet also making it more difficult to epidemiologically and geographically locate blame”.5 “Environmental wounding such as chemical or nuclear exposure can be ‘driven inward, so-matized into cellular dramas of mutation that – particularly in the bodies of the poor – remain largely unobserved, undiagnosed, and untreated’”.222EDUCAÇÃO ANTIRRACISTADefendemos, portanto, que não podemos ser apenas observa-dores dessas violências lentas que podem matar tanto quanto ou até mais que fuzis nas periferias; é preciso resistir. Contudo, não é apenas por intermédio de necrocorporações situadas nas proximi-dades de bairros majoritariamente negros que a Química pode ser instrumento do racismo antinegro, mas também na negligência de programas de pesquisas ou de indústrias em investigar e criar tecnologias que atendam às especificidades da população negra. Exemplo disso é discutido por Vargas e demais autores (2018).Segundo a autora e seus colaboradores, ainda que a pele ne-gra seja comum à maioria da população global, há pouco material na literatura especializada preocupado com a proteção desta, le-vando a diagnósticos tardios de câncer, por exemplo. Difundiu-se amplamente que, por ter mais melanina, a pele negra seria mais resistente à exposição solar e que, por isso, carece menos de cui-dado. Alia-se a isso o fato de que a mídia veicula comerciais de protetores solares apenas com protagonistas brancas/os, contri-buindo para a manutenção do racismo e também alienando pesso-as negras e não as incentivando a adquirir esses produtos (Vargas etal., 2018).Cultura e história africana e afro-brasileira no ensino de Química: a ciência negrorreferenciada Baseamo-nos em Gomes (2003, p.170) para afirmar que, entre os processos culturais construídos pelos homens e pelas mulheres na sua relação com o meio, com os semelhantes e com os diferen-tes, estão as múltiplas formas por meio das quais esses sujeitos se educam e transmitem essa educação para as futuras gerações. É por meio da educação que a cultura “introjeta os sistemas de 223ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOrepresentações e as lógicas construídas na vida cotidiana, acu-mulados (e transformados) por gerações e gerações”.Assumidos esses pressupostos, nos colocamos na perspecti-va daquelas que entendem a importância da democratização dos saberes e do papel da pesquisa e da escrita como ferramentas de subversão da lógica binária de leitura de mundo como ato político. Defendemos aqui que, tal como bell hooks, é preciso combater a lógica de sujeito e objeto na produção de saberes, uma vez que, segundo a autora, sujeitos são aqueles que “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suaspróprias identidades, de nomear suas histórias” (hooks, 1989, p.42). Como objetos, no entanto, nossa realidade é definida por outros, nossas identida-des são criadas por outros, e nossa “história designada somente de maneiras que definem (nossa) relação com aqueles que são su-jeitos” (hooks, 1989, p.42). E assim nos lançamos contra saberes monocromáticos vigentes em aulas de ciências, defendendo que existem outras formas de recortar a realidade e sistematizá-la, for-mas que considerem as relações sociais, as emoções e o respeito a estas. Por outro lado, o sistema-mundo que habitamos é rico de in-formações visuais que provocam nossa existência. Essas imagens são processos estéticos da própria criação humana, que comunica ideias sobre a realidade, seja ela presente, passada ou imaginada. Em nossas vidas sociais, adotamos a concepção da palavra “estéti-ca” como algo correlato a harmonia, proporção, ordem, grandeza, adequação simétrica das partes (Quadros, 1996). Por outro lado, em ciências, a noção de estética pode ocorrer a partir do estudo de um fenômeno, sua descrição, sua caracterização, a reflexão sobre o objeto construído. 224EDUCAÇÃO ANTIRRACISTADe uma maneira geral, as Ciências da Natureza se concen-tram em modelar, ou seja, descobrir padrões para descrever ou explicar um fenômeno, seja natural, como os problemas da Física, da Química, ou teórico, como a Matemática: “[...] mais que uma estética científica, se pode pensar nas simetrias como uma estéti-ca natural que é reconhecida pela ciência” (Menezes, 2011, p.91, tradução nossa).6No Brasil, apenas a partir dos anos 2000 surgem os primeiros trabalhos relacionados ao antirracismo na educação em Química. Podemos mencionar, à guisa de exemplo, autores como Henrique Cunha Júnior, Wilmo Francisco Júnior, Guimes Rodrigues-Filho, Anna Canavarro Benite, Bárbara Carine Soares Pinheiro e Nicéa Quintino Amauro. Essas/es são pesquisadoras/es que, tendo em vista os dispositivos legais para Educação em Direitos Humanos, as Leis nº10.639/03 e nº11.645/08 e suas diretrizes correlatas, de-senvolvem investigações e materiais didáticos em prol de suas im-plementações. O Coletivo Ciata, grupo fundado pela profa. dra. Anna Benite, nos apresenta o conceito de deslocamento epistemológico por meio de intervenções pedagógicas. Para a pesquisadora, o deslocamento epistemológico é o mecanismo de ampliação do foco curricular, uma possibilidade de adequar o currículo para percursos pedagó-gicos de emancipação e de representatividade não eurocêntricos em que a Química seja abordada não apenas conceitualmente, mas histórica e culturalmente, em contraposição às concepções individualistas e elitistas da ciência, que, notadamente, ratificam uma ciência branca, masculina, heteronormativa e de laboratório.6 “Más que una estética científica, se puede pensar en las simetrías como una estética natu-ral reconocida por la ciencia”.225ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOArticulando os três níveis do conhecimento químico (fenome-nológico, teórico e representacional), os trabalhos da pesquisado-ra e de seu grupo mostram amplo leque de possibilidades de inser-ção da história e cultura africana e afro-brasileira, assim como da educação para as relações étnico-raciais e de temas relacionados ao feminismo negro no ensino de Química: os africanos e a trans-ferência de tecnologia da África mediante a diáspora no ciclos econômicos do período imperial e colonial; os ferreiros africanos e as reações de oxirredução; pele negra e proteção solar, debaten-do sobre o racismo e o mito de que a pele negra seja mais resis-tente; interculturalidade entre ciência e conhecimento tradicional em comunidades quilombolas por meio de intervenções que pro-blematizem a biopirataria; a ciência de matriz africana como ou-tra episteme, que possibilita uma nova relação humano-natureza para conceitos da Química Ambiental; as africanidades (valores civilizatórios afro-brasileiros) e a formação social brasileira, espe-cialmente na discussão de reações de saponificação da produção do sabão de cinzas em comunidades de terreiro, que tem como foco discorrer de modo a contribuir para a superação da intole-rância religiosa; mulheres negras e a carreira acadêmica a partir de uma ciência policromática que divulgue a produção científica delas. Isso é o que entendemos por uma Ciência Química Negror-referenciada. Desde a sua fundação, em 2009, o Coletivo Ciata investigou sobre o desconhecimento referente à Lei nº 10.639/2003 entre professores de Química (Benite etal., 2012; Souza; Arantes; Be-nite, 2011); elucidou e pesquisou caminhos e possibilidades para implementação da referida lei e a educação para as relações ét-nico-raciais no ensino de Química (Alvino, 2017; Benite et al., 2017; Benite; Silva; Alvino, 2016; Camargo; Benite, 2019a, 2019b; 226EDUCAÇÃO ANTIRRACISTACamargo etal., 2019; Camargo, 2018; Santos, M. A., 2018; Santos, V. L. L., 2018; entre outros); instituiu, em parceria com a Danda-ra no Cerrado, o projeto de pesquisa e extensão Investiga Meni-na (Bastos etal., 2017; Vargas etal., 2018); desenvolveu o Projeto Afrocientista junto à Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN/2018), atendendo jovens negros do Ensino Mé-dio de uma escola da periferia da Grande Goiânia. Mais recente-mente, foi publicado o livro Trajetórias de descolonização da esco-la: o enfrentamento do racismo no ensino de ciências e tecnologias (Benite; Camargo; Amauro, 2020).7Em Santos, Camargo e Benite (2020), por exemplo, a centra-lidade são os griôs – guardiões da cultura quilombola. O elo que possibilita a discussão de conhecimentos químicos é a extração de óleo de coco, muito comum em quilombos do território Kalunga. Para os autores, uma aula com esse viés poderia começar proble-matizando os saberes e fazeres quilombolas investigando também quais as noções dos estudantes sobre o tema: quem são, de onde vieram e o que fazem os quilombolas. Assim, essa pode ser uma oportunidade de falar dos valores civilizatórios afro-brasileiros e discutir sobre a contribuição africana à formação brasileira, que não se restringe à religiosidade, à culinária etc. Em seguida, sugerem-nos que os estudantes possam conhe-cer o método de extração de óleo de coco nessas comunidades e a importância dos/as griôs para a manutenção cultural desses espaços. Não se pode perder de vista que interculturalidade pres-supõe pensamento e postura críticos diante dos efeitos nefastos da modernidade a esses povos. Assim, pode discutir com os es-tudantes sobre como a ciência eurocêntrica não é a única via de 7 No site: www.lepqi.ufg.br, o leitor pode ter acesso a essas e outras produções do grupo de pesquisa.227ANNA CANAVARRO BENITE | MARYSSON JONAS RODRIGUES CAMARGOconhecimento, que o saber tradicional tem muito a contribuir e sobre o direito de propriedade intelectual desses grupos (inclu-sive denunciando-se casos de biopirataria). A educação é intrin-secamente um ato político; dessa forma, não se pode exaltar a ciência moderna em detrimento dos conhecimentos tradicionais sob consequência de atacar o estatuto ontológico desses grupos.Importa salientar, porém, que diálogo de saberes não significa negação da ciência ou de substituição dela no currículo. Trata-se de um deslocamento epistemológico; portanto, não é uma ruptu-ra total com a episteme vigente, mas a ampliação do currículo e edição dele no sentido de transcender conteúdos conceituais para uma formação mais humanizadora que valorize a pluralidade e respeite as diferenças.À guisa de conclusãoGostaríamos de salientar que o diálogo de saberes e a intercul-turalidade no ensino de Química não se restringem aos conheci-mentos científicos e tradicionais. Mas podemos trazer à baila os saberes populares e a potência das culturas das periferias, para os quais valem pressupostos análogos aos defendidos. Advogamos, ainda, queuma efetiva descolonização de currículos ocorrerá de forma sistemática se de igual modo os cursos de formação inicial e continuada de professores alçarem em seus quadros docentes formadores/as, antenados/as nessa temática e comprometidos/as ética e politicamente com o respeito à diversidade e à democracia autêntica.A não representatividade ou a sub-representação estabelecem uma forma patológica de ser para o negro, que, conforme Frantz Fanon (2008), os colocam em processo de negação de si mesmos e, em relação à cultura, a ausência de representatividade instaura 228EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAataques à resistência ontológica desse segmento. Dessa forma, re-lacionar africanos à produção em Ciência/Química e suas Tecno-logias é deter a desvalorização desse grupo e a lógica que reconhe-ce apenas o europeu como possuidor de racionalidade e, portanto, essencialmente humano. O ensino de Química, então, pode ser uma importante ferra-menta para a superação de inconvenientes sociais que são a for-ça motriz da violação dos direitos humanos e da manutenção de iniquidades sociais. É premente que cada vez mais professores e professoras de Química se abasteçam de suporte teórico e meto-dológico para uma Educação Antirracista e que promovam uma cultura de paz, de democracia e do respeito à população negra brasileira.ReferênciasADICHIE, C. N. O perigo da história única. TEDGlobal, [s. l.], 2009. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?langua-ge=pt. Acesso em: 19 set. 2023.ALMEIDA, S. de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.ALVINO, A. C. Estudos sobre a educação para as relações ét-nico-raciais e a descolonização do currículo de Química. 2017. 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Além disso, buscou identificar a relação entre branquitude e eurocentrismo na 238EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAeducação e analisar os efeitos da branquitude para a educação das Ciências (Nascimento, 2020).Uma das motivações pelo tema foi a prática ativa do silencia-mento da discussão étnico-racial durante toda a minha vida acadê-mica. Na graduação em Ciências Biológicas – entre 1997 e 2000 –, nunca foi mencionada a importância das discussões raciais e de gênero para/na atuação docente. Essa constatação pode ser en-contrada também em outros trabalhos acadêmicos no campo do Ensino de Ciências e Biologia, como na tese do professor Douglas Verrangia (2009) e na dissertação da professora Kelly Fernandes (2015). Enquanto mulher e negra, assumo que, da mesma forma como ocorreu na graduação e em espaços educativos formais que frequentei, por uma década de docência na Educação Básica e no Ensino Superior, reproduzi o mito da neutralidade científica, abor-dando as temáticas de forma paralela aos conteúdos relativos ao ensino de Ciências e Biologia – conforme apontou Frantz Fanon (2008, p.47): “Sim, do negro exige-se que seja um bom preto; isso posto, o resto vem naturalmente”1.A relação desigual que ocorre na estrutura social racializa-da também é identificada no campo científico e na educação em Ciências. Os conhecimentos produzidos pela ciência moderna na Europa possuem um lugar hegemônico na história da ciência e na produção científica. A falsa ideia de normalidade acerca do eurocentrismo e do brancocentrismo impera também no campo científico: é “normal” pessoas brancas ocuparem lugar de privi-légio e poder; é “normal” que o conhecimento seja eurocêntrico; e é “normal” que pessoas brancas, especialmente homens, sejam os detentores naturais da capacidade cognitiva necessária para 1 A ideia contida neste parágrafo corresponde a parte da justificativa apresentada na tese de doutorado de Nascimento (2020).239CAROLINA CAVALCANTI DO NASCIMENTOproduzir conhecimentos válidos. Desta forma, torna-se “normal” que a ciência não discuta sobre o porquê de ela ser ocupada ma-joritariamente por pessoas brancas e ser eurocentrada, e que não faz diferença para a educação em Ciências se o “corpo” docente for exclusivamente branco, desde que domine o conteúdo e/ou se declare antirracista, no caso da branquitude progressista.Este capítulo tem como objetivo compartilhar como osde jus-tiça comunitária/restaurativa libertária de base africana”, do ad-vogado, professor, poeta, doutor e Ogan de Oya do Terreiro Ile Asé Taoya Logni, Sérgio São Bernardo, no qual coteja os procedimen-tos jurídicos de base eurocentrada com a dinâmica linguística performativa de base africana, na busca de uma reflexão jurídica afro-brasileira.Dissertando sobre a temática da resolução de conflitos, o autor demonstra o aristotelismo dos sistemas ético-jurídicos tão promulgados e executados no país em contraposição aos pressu-postos ético-normativos africanos e afrodiaspóricos que atuam performativamente com a realidade transcendente e imanente no comando de ações integradas em busca das melhores resoluções de conflito enquanto coletividade.Levando-se em consideração as reflexões e práticas aqui ex-postas por artistas, docentes, intelectuais e pesquisadores/as ne-gros/as, nos cabe voltar à nossa questão inicial: quem tem medo da Lei nº10.639/03? É notório perceber que tal medo se relaciona ao que a pesqui-sadora e psicóloga Cida Bento11 denomina como pacto narcísico da branquitude, isto é, o silêncio, a omissão ou a pseudoaderência às lutas contra o racismo são apenas mais um componente de au-11 BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.27ERICO JOSÉ SOUZA DE OLIVEIRAtopreservação narcísica com o intuito de permanência da ordem atual das coisas. O medo dessa lei é, sobretudo, o medo de sair de seus lugares de conforto e privilégio para realizar que a superio-ridade branca que condicionou todos os sistemas de controle das sociedades (o educacional incluso) é fracassado e frágil.Porém, é preciso chamar a branquitude à responsabilidade sobre o processo antirracista, pois que também é sua obrigação trabalhar em prol de um mundo menos desigual. Qualquer des-culpa sobre a impossibilidade de aderência a essa pauta não pode ser denominada com outro termo que não racismo e o medo de se tornar igual a quem sempre considerou inferior. É a quebra do espelho que Narciso teme.E como mais um passo no sentido de desconstruir tal postu-ra narcísica, este livro se traduz como uma incontornável fonte de inspiração e ação efetiva no âmbito escolar e universitário, en-quanto lugar de expressão de justiça social e racial.Cena de aberturaVoz off: Quando falamos da História do povo negro, sempre nos lembramos da violência inenarrável da escravidão, mas não devemos nos esquecer de que nas lutas pela sobrevivência e pela superação da violência sempre estiveram presentes a criação de alegria, de beleza e de prazer. Estes são os presentes do povo negro para o mundo.Angela Davis (2019).A Educação Antirracista é uma práxis pedagógica disruptiva, in-submissa e insurrecional que refuta a suposta universal superio-ridade cognitiva europeia em detrimento da sapiência pluriversal azeviche africana e afro-brasileira, promovendo ensinâncias e aprendências à luz de epistemes, estéticas e poéticas negras para conscienciosamente combater a chaga social chamada racismo. Consequentemente, desenvolvemos habilidades e competências em estudantes ante a engenhosidade intelectiva da pretidão sem a O pretagonismo cênico-pedagógico antirracista do Teatro Negro brasileiroRégia Mabel da S. Freitas30EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAhostilidade da lógica racista que zoomorfica nosso corpo e desle-gitima nosso corpus negro.Para tal, neste país que traveste discurso igualitário, mas es-cancara práticas racistas, é imprescindível, desde a mais tenra ida-de na Educação Básica até a aquisição dos diplomas profissionais no nível superior, (i) reformular as atuais matrizes curriculares hegemonicamente colonialescas; (ii) produzir material didático à luz das intelectualidades africana e afro-brasileira; e (iii)pro-mover formações continuadas negrorreferenciadas para ampliar o capital cultural afrodiaspórico de toda a equipe de profissionais da educação. Só assim repudiaremos o amestramento colonialesco que cotidianamente viola nossos direitos civis, políticos e sociais.Em 9 de janeiro de 2003, foi sancionada a Lei nº10.639, que tornou obrigatório (i) o ensino sobre História e Cultura Afro--Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio e (ii)a inclusão do dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. Em 10 de março de 2004, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasi-leira e Africana para Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos e Educação Supe-rior a partir do Parecer do Conselho Nacional de Educação nº003 (Brasil, 2003, 2004).Apesar dessas garantias legais, nos universos formativos (es-colas e universidades), impera a dominação política e cultural eu-rocentrada de bases teóricas e dogmáticas hegemônicas coloniais, com cosmopercepções criminalizadoras, estereotipadas e racistas das populações negras. Ademais, também não são oportunizadas para docentes e discentes trocas significativas para uma formação humanística que prime pela ética e garantia de direitos de todas 31RÉGIA MABEL DA S. FREITASas categorias sociais (classe, crença, deficiência, gênero, geração, orientação sexual, entre outras), já que se impõe uma única e exclu-siva suposta verdade sediada na produção intelectual caucasiana.Ao obstaculizar as trajetórias de brilhantismo de saberes e fazeres africanos e afro-brasileiros em matrizes curriculares, a práxis pedagógica assume uma postura epistemicida (Carneiro, 2005), que anula e desqualifica outras formas de conhecimento, deslegitima individual e coletivamente outros sujeitos cognoscen-tes e oculta e/ou invalida suas significativas contribuições para a nossa história. Por conseguinte, desprestigia-se o legado das po-pulações negras, que constituíram a brasilidade nas áreas artísti-cas, científicas, culturais, filosóficas, históricas, políticas e sociais, bem como suas respectivas estilísticas e semânticas. Portanto, urge promover a Educação Antirracista em cada componente curricular para (re)conhecer, respeitar e valorizar a capacidade intelectiva negra. Nas aulas de Artes, podemos usar como estratégia pedagógica o Teatro Negro brasileiro, pela postu-ra de combate ao racismo, para despertar a consciência crítico-re-flexiva de plateias das mais variadas faixas etárias e escolaridades. Dessa maneira, em sala, contemplando as dimensões auditivas, olfativas, orais, térmicas e visuais, as/os artistas podem convocar docentes e discentes a refletir acerca de e/ou intervir em questões raciais a partir de espetáculos – insurreições cênicas –, entre ou-tras atividades formativo-culturais.Este capítulo, garantindo o necessário rigor científico, utiliza o gênero dramaturgia para a tessitura textual. Após esta Cena Inicial acerca da relevância da Educação Antirracista da Educação Básica à Superior, o “Ato único – Educação Antirracista à luz do Teatro Ne-gro brasileiro” é dividido em duas cenas, a saber: na Cena 1, discor-re-se sobre a tríade artístico-militante do Teatro Negro brasileiro – 32EDUCAÇÃO ANTIRRACISTALer (kawe) – Dizer (wéfun) – Transformar (yépada) –, descreven-do brevemente acerca dos grupos precursores nas décadas de 1920 e 1940 e ainda apontando companhias-discípulas nacionais.Na Cena 2, arrolam-se algumas montagens nacionais de pre-sença e discursos negros, sugerindo possíveis debates antirracistas, com o objetivo pedagógico de estimular o binômio refletir-agir a par-tir de quatro grupos nacionais – Companhia Teatral Zumbi dos Pal-mares (Centro-Oeste/GO), Grupo Bambarê: Arte e Cultura Negra (Norte/PA), Grupo Teatral Caixa Preta (Sul/RS), Os Crespos (Su-deste/SP) – e todas as peças do Bando de Teatro Olodum (Nordes-te/BA). A Cena Final apresenta as Considerações (in)Conclusivas e os Patrocinadores Conceituais elencam as referências. Bom espetáculo!Atoestudos e a pesquisa no campo das discussões étnico-raciais têm-se proje-tado na minha prática docente, como mulher, negra e professora da disciplina de Ciências da Natureza e Matemática na Educação Escolar Quilombola, pela modalidade Educação de Jovens e Adul-tos, na cidade de Joinville, no norte do estado de Santa Catarina.A Educação Escolar Quilombola no Estado de Santa CatarinaApesar de uma curta experiência na Educação de Jovens e Adul-tos, até encerrar o doutorado, eu nunca tive a oportunidade de atuar na Educação Escolar Quilombola, em nenhum dos níveis de ensino disponíveis. Quando recorro à palavra “oportunidade” é porque, diferentemente de como ocorre na maioria dos proces-sos seletivos para docentes, nas redes públicas do país – tempo de docência, titulação, provas e avaliação didática – vem sendo co-mum também a anuência da liderança comunitária para se tornar professor ou professora da Educação Escolar Quilombola. Ou seja, meu título de doutora tem uma importância social e, até mesmo política, mas não é determinante para ocupar esse lugar – essa foi a primeira lição que aprendi na Educação Escolar Quilombola.Ao longo do doutorado e após a titulação, fui sendo confron-tada em mesas redondas e palestras sobre a Educação das Rela-ções Étnico-Raciais e o Ensino de Ciências com uma pergunta que 240EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAse tornou comum: “como incluir as discussões étnico-raciais nos conteúdos de Ciências e Biologia?”. E, diante dela, questionei-me sobre os caminhos que passaria a seguir a partir de então – es-pecialmente após me tornar ciente da relação simbiótica entre a colonialidade e o eurocentrismo. Em outras palavras, se denuncio que a educação em Ciência reproduz o racismo, não há lógica em pensar propostas didáticas que se submetam a uma estrutura de pensamento e de processo de ensino-aprendizagem que estou de-nunciando. Assim sendo, minha resposta tem sido:De todo modo, esta relação entre o ensino das ciências e a educação étnico-racial precisa estar centralizada no combate ao racismo reproduzido não somente através dos conteúdos eurocentrados, mas também na relação com os conteúdos. Nesta perspectiva, é preciso inverter a lógica de buscar como a educação das ciências pode contribuir para a educação an-tirracista para buscar saber como a educação das relações ét-nico-raciais e/ou o conhecimento sobre a história e a cultura africana, afro-brasileira e indígena pode contribuir para uma educação científica antirracista (Nascimento, 2020, p.108).A partir desta perspectiva, o objetivo deste texto é comparti-lhar como a Educação Escolar Quilombola vem contribuindo, sob o meu ponto de vista, para tornar a disciplina de Educação em Ciências da Natureza e Matemática em um campo de positivação da cultura africana e afro-brasileira, bem como questionar as me-todologias e práticas docentes que estão alinhadas à colonialidade mantida pela educação hegemônica vigente.De acordo com o documento final da Conferência Nacional da Educação (CONAE), de 2010, que determina que, em relação à educação quilombola, o Governo Federal, estados e municípios deverão:241CAROLINA CAVALCANTI DO NASCIMENTOa) Garantir a elaboração de uma legislação específica para a educação quilombola, com a participação do movimento ne-gro quilombola, assegurando o direito à preservação de suas manifestações culturais e à sustentabilidade de seu território tradicional.b) Assegurar que a alimentação e a infraestrutura escolar qui-lombola respeitem a cultura alimentar do grupo, observando o cuidado com o meio ambiente e a geografia local. Promover a formação específica e diferenciada (inicial e continuada) aos/às profissionais das escolas quilombolas, propiciando a elabora-ção de materiais didático-pedagógicos contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo.c) Garantir a participação de representantes quilombolas na composição dos conselhos referentes à educação, nos três en-tes federados.d) Instituir um programa específico de licenciatura para qui-lombolas, para garantir a valorização e a preservação cultural dessas comunidades étnicas.e) Garantir aos professores/as quilombolas a sua formação em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a sua própria escolarização.f) Instituir o Plano Nacional de Educação Quilombola, visando à valorização plena das culturas das comunidades quilombolas à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica.g) Assegurar que a atividade docente nas escolas quilombolas seja exercida preferencialmente por professores/as oriundos/as das comunidades quilombolas (Conferência Nacional de Edu-cação, 2010, p. 131-132).242EDUCAÇÃO ANTIRRACISTASegundo o Ministério da Educação, um grande número de comunidades remanescentes quilombolas não possui escolas qui-lombolas, ou seja, escolas situadas no território quilombola que atendam crianças, jovens e adultos, e ofereçam um currículo pró-ximo a esta realidade social, histórica e cultural (Brasil, 2012). Assim sendo, conforme a Resolução CNE nº08/2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Qui-lombola na Educação Básica, a Educação Escolar Quilombola se trata de uma modalidade de ensino que requer[...] pedagogia própria em respeito à especificidade étnico--racial e cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucio-nais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica Brasileira. Na estruturação e no funciona-mento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valo-rizada sua diversidade cultural (Brasil, 2012, p.1).Cabe ressaltar que essas diretrizes representam uma conquis-ta dos movimentos negros, em especial, do movimento quilombo-la no Brasil, pois agrega à Educação das Relações Étnico-Raciais a valorização dos saberes, das tradições e do patrimônio cultural da ancestralidade africana e afrodiaspórica que são preservadas pelas comunidades remanescentes quilombolas.Em Santa Catarina, o Caderno de Política de Educação Escolar Quilombola (2018), da Secretaria de Estado da Educação, apresenta as diretrizes da política da Educação Escolar Quilombola no esta-do. Essas diretrizes foram construídas e definidas contando com a participação de representantes de doze comunidades quilombolas, docentes, representações do Movimento Negro Unificado de San-ta Catarina, técnicos da Secretaria de Estado da Educação (SED/SC) e do Instituto Estadual de Educação, supervisores de Políticas e Planejamento das Gerências Regionais de Educação (Gered) e 243CAROLINA CAVALCANTI DO NASCIMENTOda Coordenadoria Regional da Grande Florianópolis, diretores dos Centros de Educação de Jovens e Adultos (Ceja), pesquisadores/as e educadores/as que trabalham a temática da Educação Escolar Quilombola. O objetivo desta construção coletiva foi[...] atender estudantes das escolas públicas oriundos dos ter-ritórios quilombolas rurais e/ou urbanos, respeitando a sua identidade e cultura. O histórico deste processo, no entanto, resulta de esforços anteriores de mobilização das comuni-dades quilombolas em torno da superação de um quadro de exclusão escolar, identificado como um dos maiores respon-sáveis pelo entrave à mobilidade econômica e ao acesso às políticas públicas de moradia, terra, saúde e educação (Santa Catarina, 2018, p.13).Conforme consta no Caderno, as diversidades regionais e socioculturais das comunidades demandam o trato pedagógi-co específico das políticas educacionais para a Educação Esco-lar Quilombola, uma vez que a Lei nº10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e dá outras providências, “não é suficiente para alcançar o grau de aprofundamento destas realidades sócio-históricas, políticas, econômicas e culturais” (Santa Catarina, 2018, p.13).Nesse sentido, uma das primeiras ações foi o Programa Pro-jovem Campo Saberes da Terra,único: educação antirracista à luz do teatro negro brasileirocena 1: ler (kawe) – dizer (wéfun) – transformar (yépada)1: a tríade artístico-militante do teatro negro brasileiroVoz off: Não é tempo de reclamar, nem tempo de chorar. Tempo é de afirmar nosso ser, sem mendigar nosso direito ao poder. Tempo é de batalhar a guerra secular, ao invés de lamentar ou implorar. Invés de só gritar, lutar. Invés de vegetar e conformar, lutar. Invés de evadir e sonhar, lutar. Semear a luta com decisão, ampliá-la com ardor e paixão, sem temer a incompreensão do inimigo ou do irmão.Abdias do Nascimento (1983, p. 109-133).1 Gomes (2023).33RÉGIA MABEL DA S. FREITASA Militância é uma defesa ativa diuturna por uma causa individual e/ou coletiva que almeja protestar para modificar uma realidade. Na tentativa de extirpar a chaga social chamada racismo, criamos estratégias negras de resistência pré, trans e pós-13 de maio 1888, incursionando também pelo campo das artes (artes plásticas, ci-nema, dança, escultura, literatura, música, teatro...) com o escopo da garantia efetiva dos nossos direitos civis, políticos e sociais2. A Militância Negrocênica é um projeto político-cultural antirracista que, por meio do Teatro Negro brasileiro leva aos palcos de manei-ra idiossincrática e contundente os binômios poder-saber e refle-xão-ação, engendrando liames culturais, educacionais, políticos e sociais a partir de suas insurreições cênicas.O Teatro Negro brasileiro é um movimento sociocultural de combate ao racismo, lastreado pela tríade Ler (kawe) – Dizer (wé-fun) – Transformar (yépada), com o escopo de transformar o palco em trincheira para refletir e intervir sobre questões raciais (pré, trans e pós-Abolição), ressemantizar o legado da ancestralidade, preencher lacunas de referenciais africanos e afro-brasileiros e revelar habilidades artísticas de uma plêiade negra. Cada grupo que o promove é um patrimônio imaterial brasileiro antirracista político-educativo pelo viés das Artes Cênicas que refuta o mito da democracia racial e a fábula das três raças, fomentando uma reflexão crítica acerca das populações negras dos estigmas escra-vagistas até os grilhões contemporâneos.Ler (kawe) é o rito iniciático desses coletivos em busca de uma aprofundada fundamentação teórico-conceitual para a produção de seu discurso antirracista, visto que o Teatro Negro brasileiro se 2 O livro Direito, arte e negritude, no qual assino o capítulo “O perfil azeviche antirracista que a negritude em cena criou: o teatro negro brasileiro ante a violação de direitos fundamen-tais”, aprofunda com denodo essa questão. O e-book está disponível em: https://www.editorafi.org/ebook/108negritude.34EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAtornou um espaço de produção e difusão de saberes azeviches. As companhias realizam diversos tipos de leituras – fílmicas, imagé-ticas, textuais, entre outras – objetivando a formação intelectual das/os artistas. Seja pesquisa sobre os saberes e fazeres do conti-nente africano, seja investigação acerca de experiências afrodias-póricas no que tange memórias e histórias de lutas diárias pela nossa cidadania plena, os estudos são fulcrais para (re)conhecer saberes identitários, políticos e estético-corporais.Essa dimensão conceitual (ler – kawe), que promove a leitura de fatos, conceitos e princípios, é descrita por Coll et al. (1986) como uma seleção de formas ou saberes culturais, conceitos, ex-plicações, raciocínios, habilidades, linguagens, valores, crenças, sentimentos, atitudes, interesses etc. Assim, elas/es também in-vestigam dramaturgias mundiais que coadunam com seus princí-pios, encenando-as na íntegra ou de forma adaptada e/ou criam ainda seus próprios textos dramatúrgicos, apresentando, entre outros temas, as culturas africanas e afro-brasileiras, as biografias de heroísmo negro invisibilizadas na historiografia e as múltiplas facetas do racismo brasileiro.Em seguida, esses grupos planejam a discursividade a ser realizada na mediação cultural para que seja definida a melhor forma de dizer (wéfun) para as mais distintas plateias. Nessa dimensão procedimental (dizer – wéfun), prima-se por hábitos, técnicas, habilidades, estratégias, métodos e rotinas, que são ações ordenadas e dirigidas para um fim: saber fazer e saber agir de maneira eficaz (Coll et al., 1986). Para tal, aos textos contra-coloniais proferidos nas peças, são aliadas outras linguagens artísticas (audiovisual, dança, música, poesia...), amalgamando cosmopercepções auditivas, olfativas, orais, térmicas e visuais. Essa interlocução promove35RÉGIA MABEL DA S. FREITAS1. O contínuo exercício de uma memória cultural dialógica. Essa memória se faz representar como um entrelugar de cru-zamentos culturais, filosóficos, metafísicos, traduzindo-se, basicamente, através do jogo de linguagens verbais, cênicas, gestuais, corporais e rítmicas. 2. A utilização de estratégias que exprimem a teatralidade das manifestações culturais negras [...] [que faz] aflorar a polivalência dos significados socialmente barrados; [...] [promove] um processo de des-realização e desconstrução do estereótipo; [...] [e] procura questionar certas verdades universais, através da paródia, da sátira, da ironia e do pastiche, utilizados como recursos estilísticos. 3. A atualização de formas de expressão rituais negras, religiosas e seculares, como intertextos constitutivos do discurso teatral. 4. A reposição histórica da figuração do negro, movendo-o e deslocando-o da situação de objeto enun-ciado para a de sujeito produtor de discurso, [...] rompendo a invisibilidade e a indizibilidade retratadas pelo palco tradi-cional; 5. A construção de imagens que desfiguram os emble-mas da brancura, realçando traços da diferença negra [...]. 6. A elaboração de uma linguagem cênico-dramática que atraia e estimule a plateia, [...] pela representação coletiva e do co-letivo, libera, assim, uma fala lúdica e dinâmica que induz a socialização, a catarse, o movimento, a ação e o compromisso do espectador (Martins, 1995, p.87-88).A última vertente da tríade – transformar (yépada) – extra-pola o campo cognoscitivo das duas outras e adentra o condutual no que tange às relações interpessoais. Os coletivos se propõem a extirpar o racismo e, mais do que refletir, convidam partícipes e plateias a intervirem sobre questões raciais, visando a uma virada estrutural e comportamental na vida como um todo. No que se refere às/aos artistas, enucleando atitudes, valores e normas, as transformações promovidas adentram a cidadania:No âmbito das relações intra e interpessoais (direitos civis), [...] estimula o crescimento intelectual e moral, melhora a 36EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAdesenvoltura em espaços sociais e eleva a autoestima. Quan-to à consciência política (direitos políticos), auxilia no olhar mais crítico diante das questões sociais e no poder de dis-cussão. No que diz respeito ao bem-estar econômico-social (direitos sociais), ajuda na realização de alguns desejos pes-soais bem como na aquisição de alguns bens duráveis (Frei-tas, 2015, p.209).Quanto a possíveis mudanças comportamentais das/os espec-tadoras/es no intercâmbio com artistas-militantes, nessa dimen-são atitudinal (transformar – yépada), elas/es são convocadas/os a revisitar normas sociais racistas vigentes, podendo, nesse pro-cesso de convencimento, albergar ou rejeitar. Para Coll et al. (1986, p.159), “a mensagem ocupa um lugar importante no processo de persuasão. A informação em si pode ser relevante para o receptor e, nesse caso, falaremos do poder ou da persuasividade da infor-mação”. Essas informações, quando ressignificadas, transmutam--se em conhecimentos e instrumentalizam cidadãs/os para que ajam de maneira mais consciente.Como nessa permuta político-cultural entre artistas e pla-teias impera a multirreferencialidade (plurais e idiossincráticos sistemas de referências), há uma infinidade de leituras einter-pretações plausíveis e (não) previsíveis. Como todo ato interlo-cutivo é repleto de ditos, não ditos, entreditos, subentendidos e mal-entendidos, há elementos reconhecíveis e significativos, mas igualmente (in)traduzíveis a depender das subjetividade e relações alteritárias de cada indivíduo. Ademais, insta também levar em consideração as ontologias (reflexões sobre os seres) dessas/es espectadoras/es das mais distintas faixas etárias e es-colaridades.Coll et al. (1986, p.153-154) ainda acrescentam que toda/o ci-dadã/o, ao ocupar diferentes papéis e interagir com outrem,37RÉGIA MABEL DA S. FREITASvê-se sujeito a uma mobilidade geográfica e social que contri-bui para a descontinuidade dos papéis. Todos esses fatores in-fluem e pressionam os sujeitos para que modifiquem as suas atitudes e valores e mudem ou ajustem as suas condutas às novas situações nas quais se veem envolvidos.Dessa maneira, podem, caso desejem, combater práticas ra-cistas nos recintos pelos quais trasladem e/ou mudar sua própria postura ante os grilhões escravagistas contemporâneos que per-versamente desumanizam as populações negras.Os precursores coletivos artístico-militantes que primaram pela presença e discurso negros na caixa cênica foram as cariocas Companhia Negra de Revista (1926-1927), de João Cândido Fer-reira e Jaime Silva, Companhia Teatral Ba-Ta-Clan Preta (1927), de João Cândido Ferreira, e Teatro Experimental do Negro, o TEN (1944-1961), de Abdias do Nascimento, considerado o “Pai do Tea-tro Negro brasileiro”, em parceria com Aguinaldo Camargo, Anto-nieta, Antônio Guerreiro Ramos, Arinda Serafim, Geraldo Campos de Oliveira, Ilena Teixeira, José Pompílio da Hora, Marina Gonçal-ves, Ruth de Souza e Sebastião Rodrigues Alves, entre outras/os (Nascimento, 2004). Infelizmente, as nossas pesquisas não encon-traram grupos de Teatro Negro brasileiro na década de 1930. O soteropolitano ator negro João Cândido Ferreira – Jocanfer, Monsieur De Chocolat ou De Chocolat – e o português cenógrafo branco Jaime Silva criaram em 1926 a Companhia Negra de Re-vista. Esse coletivo não mudou a estrutura de revistas e burletas, porém inovou esse estilo com músicas e danças inspiradas nas culturas afro-brasileira e afro-americana. Em apenas um ano de existência, ela teve uma intensa agenda com aproximadamente 400 apresentações ocorridas, além do Rio de Janeiro, em outras cidades, como Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo (Barros, 2005; Domingues, 2023). 38EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAEssa “trupe chocolatina” estreou o pretagonismo nos palcos branco-hegemônicos brasileiros, apresentando as montagens “Tudo preto”, “Preto e branco”, “Carvão nacional” e “Café torrado” com artistas elogiadas/os pela crítica especializada, como Oswal-do Viana, Rosa Negra, Dalva, Jandira, entre outras/os. Concomi-tantemente, algumas pessoas, inconformadas com esse estrelato negro, julgaram-na como deprimente, indecorosa e separatista. Afinal, a lógica brancocêntrica inadmite o pretagonismo em uma manifestação artística coletiva na qual não se via a presença ne-gra numa condição subalterna, ingênua nem infantilizada. Insta salientar que a presença branca no grupo estava restrita apenas a Jaime Silva, alguns artistas e técnicos (Domingues, 2023).Em 1927, após dissidência de ideais com Jaime Silva, João Cândido Ferreira deixou a Companhia Negra de Revista e fundou a Companhia Teatral Ba-Ta-Clan Preta, que, no seu único mês de sobrevivência, apresentou o espetáculo “Na Penumbra”. Deo Cos-ta, chamada “Vênus de Jambo”, foi a sua principal estrela. Dentre as maiores revelações para o cenário artístico nacional, temos o multiartista Sebastião Bernardes de Souza Prata (Grande Otelo), que foi protagonista da Negra durante os cinco meses nos quais integrou o grupo e o músico e compositor Alfredo da Rocha Viana Filho (Pixinguinha), que participou da Negra e da Preta (Domin-gues, 2023; Neto, 2017).O paulistano ativista negro Abdias do Nascimento3 criou em 1944 o TEN com as/os parceiras/os supracitadas/os. Ao instaurar a tríade artístico-militante do Teatro Negro brasileiro, Ler (kawe) – Dizer (wéfun) – Transformar (yépada), deu um basta no discurso 3 Ator, diretor, dramaturgo, poeta, político (Secretário de Defesa da Promoção das Popula-ções Afro-Brasileiras do Rio de Janeiro, Deputado e Senador da República), um dos fundado-res da Frente Negra Brasileira (1931) e criador do Teatro do Sentenciado no Carandiru (1942), penitenciária situada na zona norte de São Paulo. 39RÉGIA MABEL DA S. FREITAScaucasiano das supostas anomia social e incapacidade intelectiva sobre as populações negras. Esse grupo foi o primeiro a encenar dramaturgias internacionais (Nascimento, 2023), como “O Impe-rador Jones”, de Eugene O’Neill, “Calígula”, de Albert Camus, “Ote-lo”, de Shakespeare etc. – nas quais as/os atrizes/atores negras/os não representaram personagens cômicos nem subalternizados.Quanto à dramaturgia nacional4, Abdias do Nascimento reu-niu no livro Dramas para negros e prólogo para brancos: antologia de teatro negro-brasileiro textos escritos e/ou encenados entre 1947 e 1949 pelo TEN, a saber: “Além do Rio”, de Agostinho Olavo, “Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues, “Aruanda”, de Joaquim Ribeiro, “Auto da noiva”, de Rosário Fusco, “Filhos de Santo”, de José Pinho, “O castigo de Oxalá”, de Romeu Crusoé, “O emparedado”, de Tasso da Silveira, “O filho pródigo”, de Lúcio Cardoso, e “Sortilégio – Misté-rio Negro”, de sua autoria. Além desse último, também é autor de “Rapsódia Negra”. Dentre as artistas reveladas pelo TEN, há Ruth de Sousa e Léa Garcia (atrizes) e Mercedes Baptista (bailarina). Cônscia de que “as raízes do Teatro Negro brasileiro atraves-sam o Atlântico e mergulham nas profundidades da cultura afri-cana” (Nascimento, 1961, p.9), a companhia realizou várias ativi-dades formativo-culturais. Entre elas, citamos a organização de (i)curso de alfabetização5, corte e costura e de cultura geral para artistas integrantes; (ii)concurso (Artes Plásticas sobre o tema do Cristo Negro, Rainha da Mulata e da Boneca de Pixe); (iii)evento (Convenção Nacional do Negro, Conferência Nacional do Negro, Congresso do Negro Brasileiro); (iv) exposição (Museu de Arte 4 Insta salientar que o TEN também encenou “Pedro Mico” e “Terras do Sem Fim” dos reno-mados autores Antônio Callado e Jorge Amado respectivamente (Nascimento, 2004).5 Algumas/alguns das/os primeiras/os integrantes do TEN não possuíam escolaridade, pois eram operárias/os, empregadas/os domésticas/os, indivíduos sem profissão definida e simples funcionárias/os públicas/os.40EDUCAÇÃO ANTIRRACISTANegra), (v)jornal (Quilombo: vida, problemas e aspirações do ne-gro); entre outras.Por todo esse legado, Abdias do Nascimento angariou e ainda angaria artistas-discípulas/os nacionais que criaram seus respec-tivos coletivos inspirados no TEN. Num breve traslado pelas cinco regiões brasileiras, elegi cinco grupos que se autodeclaram como companhias que promovem Teatro Negro6. Todas/os suscitam um debate racializado a partir de insurreições cênicas (espetácu-los), a saber: “Èmí – a concepção yorubana do universo”7 – Grupo Bambarê – Arte e Cultura Negra/PA, “Ninhos e Revides – Mirando o Haiti”8 – Os Crespos/SP, “Estudo sobre O Osso de Mor Lam”9 – Grupo Teatral Caixa Preta/RS, “Áfricas”10 – Bando de Teatro Olodum/BA, “Anjo Abdias”11 – Companhia Teatral Zumbi dos Pal-mares/GO (Freitas, 2019). Outrossim, elas também promovem múltiplas atividades for-mativo-culturais que possuem caráter pedagogicamente antirra-cista, tais como criação de rádio comunitária (Rádio Exu – Gru-po Bambarê – Arte e Cultura Negra/PA), publicação de revista (Revista Legítima Defesa – Os Crespos/SP), realização de even-to (Encontro de Arte de Matriz Africana – Grupo Teatral Caixa Preta/RS), exposição (Trajetória Cabaré da Rrrrrraça – Bando de Teatro Olodum/BA), promoção de oficina (Oficinas teatraisnos 6 A biografia mais detalhada dessas companhias pode ser lida na minha tese (Freitas, 2019).7 Criação do mundo fundamentando-se nas concepções filosóficas e históricas dos povos iorubanos.8 Influência da revolução haitiana em revoltas e levantes negros e não negros no continente americano.9 Fábula africana com toque de brasilidade a partir do texto “O Osso de Mor Lam”, do sene-galês Birago Diop.10 Reverência à complexidade diversa do Continente-Mãe através de lendas e contos da cultura africana.11 Homenagem biográfica ao Pai do Teatro Negro brasileiro, Abdias do Nascimento. 41RÉGIA MABEL DA S. FREITASencontros Afro-Goianos – Companhia Teatral Zumbi dos Palma-res/GO), entre outras.cena 2: o didatismo antirracista do teatro negro brasileiroVoz off: O preto restaurado, reunido, reivindicado, assumido, e é um preto, não, não é um preto, mas o preto, alertando as antenas fecundas do mundo, bem plantado na cena do mundo, borrifando o mundo com sua potência poética.Franz Fanon (2008, p. 117).Os coletivos nacionais que promovem Teatro Negro, em todas as suas insurreições cênicas (montagens), abordam discursos crí-tico-raciais acerca do pré-trans-pós-13 de maio de 1888 sempre numa perspectiva interseccional12, enucleando outras categorias sociais (classe, crença, gênero, geração, orientação sexual...) à raça. Como mais uma estratégia negra de resistência, eles, por meio da militância negrocênica, exercitam diuturnamente a prá-tica e a teoria política do teatro com viés racial. As temáticas e estéticas variam de acordo com as regiões brasileiras a depender dos interesses econômicos, poéticos, políticos e experiências dias-póricas locais.Para trazer à baila a diversidade temática dos séculos XX e XXI, seguem, em forma de ABC, montagens nacionais nas quais as/os artistas militaram antirracistamente, ano de estreia, grupo e esta-do. Estimulo cada leitor/a deste livro a buscar os textos dramáticos, assistir a estas peças se for possível (virtual ou presencialmente) e dialogar com os elencos e/ou arquivistas digitais dos acervos:12 Termo cunhado por Kimberlé Crenshaw que significa interação entre dois ou mais eixos de subordinação.42EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAabc de espetáculos brasileiros de discurso e presença negrosAfroMe (2016 – Grupo Pretagô de Teatro/RS) Bambi’s Son (1986 – Teatro Profissional do Negro – TEPRON/RJ)Canjá Ebé Mufo Calí (2001 – Teatro Negro e Atitude – TNA/MG)Dra. Sida – Essa mulher vai fazer a sua cabeça (2002 – Cabeça Feita/DF)Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas (2013 – Os Cres-pos/SP)Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens (2016 – Coletivo Negro/SP)Griot e os Espíritos da Terra (2011 – Grupo Bambarê – Arte e Cultura Negra/PA)Hamlet Sincrético (2005 – Grupo Teatral Caixa Preta/RS) Ida (2016 – Coletivo Negro/SP)Jesus Cristo Negro (1986 – Grupo Cultural Arte Negra/PR)(KAWE – LER) Exaltação a Negritude (2011 – Ifhá Radhá de Art’Ne-gra/PE)Ladainha (2021 – Cia. Núcleo Coletivo 22/GO)Macacos (2020 – Cia. do Sal/SP)Na penumbra (1927 – Companhia Teatral Ba-Ta-Clan Preta/RJ)O Dia 14 (2007 – Cia. Abdias do Nascimento/BA)Preta-à-Porter (2012 – Negras Experimentações Grupo de Arte – NEGA/SC)Quando as palavras sopram os olhos... Respiro (2012 – Capulanas Companhia de Arte Negra/SP)RANDAKPALÔBAOBÁ: A busca da semente (2010 – Grupo de Tea-tro Nuspartus/PR) Sortilégio – Mistério Negro (1957 – Teatro Experimental do Negro/SP) Tudo Preto (1926 – Companhia Negra de Revista/RJ)Um novo olhar negro (2012 – Companhia Teatral Zumbi dos Palma-res/GO)43RÉGIA MABEL DA S. FREITASa Volta dos Orixás (2012 – Ka-Naombo/PR)(WÉFUN – DIZER) Onde está o nosso quilombo (2019 – ÈmíWá/PR)oXum (2018 – Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas/NATA/BA) (YÉPADA – TRANSFORMAR) Silêncio (2007 – Cia dos Comuns/RJ)Zumbi está vivo e continua lutando (1995 – Bando de Teatro Olo-dum/BA)Todas essas dramaturgias podem promover uma Educação Antirracista à luz do Teatro Negro brasileiro nas aulas de Artes da Educação Básica à Superior, estimulando os binômios poder-saber e refletir-agir. À guisa de exemplificação acerca da tríade teatro-cul-tura-educação, destacarei peças das companhias nacionais, discí-pulas do TEN, apresentadas na seção anterior, descrevendo breve-mente as sinopses (Freitas, 2019). Em cada uma delas, estrelou-se um discurso repleto de picardia sobre experiências afrodiásporas, notabilizou-se a nossa resiliente historiografia e/ou dignificaram-se as culturas africanas e/ou afro-brasileira. Como a efetiva formação continuada antirracista para docen-tes ainda é parca ou inexistente, sugiro obras exclusivamente de autoras/es negras/os nacionais e internacionais que qualificarão o debate proposto na dramaturgia. Essas leituras opcionais apro-fundarão o capital cultural em salas de aula, enriquecendo ainda mais o despertar da consciência crítico-reflexiva suscitado nas montagens. Além da prévia leitura das/os docentes, a depender da escolaridade e da faixa etária, é relevante que as/os discentes também leiam capítulos ou trechos. É importante destacar que a maioria dos livros propostos estão disponíveis gratuitamente na internet ou podem ser adquiridos por valores acessíveis. O espetáculo “Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas”, do paulistano grupo Os Crespos, que reflexiona sobre a tra-44EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAjetória de seis mulheres negras revisitando os impactos da escra-vidão no Brasil nas esferas das relações entre afetividade, gênero e raça, pode ser refletido segundo o entendimento de Tudo so-bre o amor – novas perspectivas, da norte-americana doutora em Inglês bell hooks13. Nessa obra também autobiográfica, a artista intelectual estadunidense nos conduz a repensar o processo inte-rativo do amor e os papéis de gênero sexistas e racistas na nossa sociedade que ainda é regida lamentavelmente pelo pensamento patriarcal.O debate da montagem “Griot e os Espíritos da Terra”, do Gru-po Bambarê – Arte e Cultura Negra, do paraense Grupo Bambarê – Arte e Cultura Negra, baseada no conto “Os Espíritos da Ter-ra” do diretor-fundador Edson Catendê, que apresenta, através de Griots – portadores e precursores da sabedoria milenar a partir da tradição oral, a relação entre o ser humano moderno e con-temporâneo com os seus ancestrais –, pode aliar-se à Cosmologia africana dos bantu-kongo: princípios de vida e vivência, do cientis-ta e médico congolês doutor em Educação Busenki Fu-kiau. Essa pessoa solar nos brinda com linguagem proverbial, visto que jogos de palavras são essenciais para o entendimento.A peça “Hamlet sincrético”, do gaúcho Grupo Teatral Caixa Pre-ta, que fusiona o clássico texto de William Shakespeare com alguns elementos das culturas e religiões afro-brasileiras – Hamlet/Xangô, o Fantasma Hamlet/Oxalá, Cláudio Zé Pelintra, Polônio/ex-babalo-rixá convertido em pastor evangélico... – é possível ser estudada a partir de Apropriação cultural, do doutor em Ciências Sociais Rod-ney William. Esse autor traslada entre símbolos de pertencimento, esvaziamento de significados, aculturação e apropriação cultural 13 O nome é grafado com letras minúsculas, porque se deseja que a obra tenha mais destaque que a autora.45RÉGIA MABEL DA S. FREITASante a riqueza cultural de grupos intelectualmente inferiorizados como povos indígenas e populações negras. Para a discussão acerca da insurreição cênica “Um novo olhar negro”, da goiana Companhia Teatral Zumbi dos Palmares, na qual se clama pela presença negra de forma humanizada na socieda-de enquanto pretagonista e sujeito cognoscente das suas próprias narrativas, há a possibilidade de ser estudado O pacto da branqui-tude, da doutora em Psicologia Cida Bento. Nesse livro, a eleita como uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade discorre sobre a importância da equidade racial e de gênero e o pacto narcísicoda branquitude de autopreservação que busca a manutenção dos hierarquizantes pilares sociorraciais da nossa sociedade.No que diz respeito ao genuinamente baiano Bando de Teatro Olodum – grupo que pesquisei no mestrado e doutorado (Freitas, 2015, 2019) e sobre o qual tenho publicado em periódicos14, elenco a seguir integralmente o repertório negro-dramatúrgico e mais li-vros antirracistas para verticalizar o debate:14 Para a leitura dessas publicações, seguem alguns links: “A Afromusicalidade do Bando de Teatro Olodum” (https://iberoamericasocial.com/a-afro-musicalidade-do-bando-de-teatro -olodum/#:~:text=O%20Bando%20de%20Teatro%20Olodum,p%C3%BAblica%20e%20legi-tima%20a%20negritude), “A necropolítica juvenil da pátria-mãe-hostil racista brasileira in cena” (https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/200155/192953), “O Erê dos 25 anos do Bando de Teatro Olodum” (https://revistas.ufg.br/artce/article/view/69907), “Teatro Ne-gro Brasileiro: um ilê de práticas formativas antirracistas para a Educação Superior” (https://periodicos.ufes.br/kirikere/article/view/35808/24275), “‘Deslumbrante por ter magnitude’: a sonoridade estética do espetáculo Erê do Bando de Teatro Olodum” (https://periodicos.ufop.br/ephemera/article/view/4469), “Erê: a insurreição cênica das Bodas de Prata do Bando de Teatro Olodum” (https://www.researchgate.net/publication/347048886_Ere_a_insurreicao_cenica_das_Bodas_de_Prata_do_Bando_de_Teatro_Olodum), “Prática formativa antirracista in cena: o brado antigenocida do Erê do Bando de Teatro Olodum” (https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/53403), “Bando de Teatro Olodum à luz da Análise Cognitiva: um espaço multirreferencial de aprendizagens negrorreferenciadas” (https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/article/view/33397), “A História da Árvore Cognitiva do Bando de Teatro Olodum” (https://revistas.udesc.br/index.php/urdimento/arti-cle/view/1414573101242015147).46EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA• Essa é nossa praia (1991): mosaico de tipos humanos negros do Centro Histórico de Salvador, tais como o militante negro antirracista, o anônimo que sonha ser artista, o gari que almeja um salário mais digno, o traficante de drogas ilícitas, o policial militar corrupto, entre outros. / Verdade seduzida, do doutor em Letras Muniz Sodré – complexo relacional entre os sujeitos e seus quadros de referências;• Onovomundo (1991): origem do povo baiano através das qua-tro nações do candomblé, associando a cada uma os quatro elementos básicos da natureza – ar (bantu), fogo (nagô), terra (jêje) e água (candomblé de caboclo). / Intolerância religiosa, do doutor em Semiótica e Linguística Geral Sidnei Nogueira – discriminação que fere o direito constitucional à crença, que é considerado um crime de ódio (racismo religioso) se praticado contra candomblecistas;• Ó paí, ó!15 (1992): tipos humanos de Essa é nossa praia voltam à cena acompanhados por mais moradoras/es locais para discu-tir genocídio infanto-juvenil, pobreza, racismo e a suposta demo-cracia da Terça da Bênção16. / Da diáspora: identidades e media-ções culturais, do sociólogo jamaicano mestre em Artes Stuart Hall – multiplicidades e possíveis deslocamentos identitários;• Woyseck (1992): opressão da miséria cotidiana abordada com humor e ironia a partir da adaptação do texto homônimo de Georg Bücher no qual ocorre um crime passional praticado por um soldado raso, que aceita ser explorado cientificamente por parca recompensa financeira, simbolizando a subjugação humana. / Memórias da plantação – Episódios de racismo coti-diano, da portuguesa doutora em Filosofia Grada Kilomba – le-gado racista oriundo da perversa lógica colonial que subalter-niza nossa humanidade negra; 15 A montagem Ó paí, ó! tornou-se filme em 2007 e minissérie da Globo em 2008 e 2009. 16 Evento realizado no Centro Histórico de Salvador com missas e shows que reúne baianas/os e turistas.47RÉGIA MABEL DA S. FREITAS• Medeamaterial (1993): versão contemporânea de Medeia, de Heiner Müller, mesclando o mito da tragédia grega à nossa tão local baianidade. / Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, da mestra em Psiquiatria Neusa Santos – impactos do racismo no psíquico de pessoas negras brasileiras que ascendem socialmente cujo custo emo-cional foi o apagamento de suas identidades;• Bai Bai Pelô (1994): tipos humanos de Essa é nossa praia e Ó paí, ó! retornam ao palco com mais moradoras/es locais para desoprimirem sobre expulsão e permanência de suas ca-sas devido à reforma capitalista nada humanística desse ponto turístico soteropolitano ocorrida em 1992. / Negritude: usos e sentidos, do congolês doutor em Antropologia Kabengele Mu-nanga – definição de si e dos outros enquanto unidade de gru-po, proteção contra inimigos externos, manipulação ideológica por interesses econômicos, políticos entre outros;• Zumbi (1995): luta pela sobrevivência de um Zumbi contem-porâneo – líder do movimento de resistência contra a ação da polícia militar na derrubada de casas com instalações precá-rias (barracos). / A urbanização brasileira, do doutor em Geo-grafia Milton Santos – organização socioespacial do Brasil à luz de aspectos econômicos, sociais e territoriais;• Zumbi está vivo e continua lutando (1995): homenagem itine-rante à história de Zumbi desde as saídas das etnias africanas até a destruição do Quilombo dos Palmares. / Mocambos e qui-lombos: uma história do campesinato negro no Brasil, do doutor em História Social Flávio Santos Gomes – percurso histórico dos quilombos brasileiros seiscentistas até as comunidades qui-lombolas contemporâneas; • Erê pra toda vida – Xirê (1996): associação das oito crianças assassinadas no Rio de Janeiro em 1993 na Chacina da Can-delária a oito orixás. / Necropolítica, do camaronês doutor em 48EDUCAÇÃO ANTIRRACISTAHistória e Política Achille Mbembe – corpo negro matável pela violência estatal como uma suposta estratégia de segurança desse segmento visto como inimigo social;• Ópera de três mirréis (1996): adaptação da obra A ópera de três vinténs, de Bertolt Brecht, que delata a realidade de algu-mas/alguns outsiders brasileiras/os, a saber: trapaceiros, mise-ráveis, prostitutas, traficantes de drogas ilícitas etc. / Pele negra, máscaras brancas, do doutor em Psiquiatria Franz Fanon – crí-tica, num traslado da Antropologia até a Psiquiatria, à “epider-mização da inferioridade” imposta pela sociedade colonialista;• Cabaré da Rrrrraça (1997): musical com formato de progra-ma de auditório que discute um rol de temas sobre a questão racial, como comportamento, religião, sexualidade, profissão, discriminação, posicionamento político, entre outros. / Racis-mo, sexismo e desigualdade no Brasil, da doutora em Filosofia Sueli Carneiro – coletânea de textos publicados pela autora nos quais se apresentam os liames entre racismo, sexismo e rela-ções sociopolíticas;• Um tal de Dom Quixot (1998): adaptação de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, em que o cavaleiro em suas fantasias se depara com a realidade sociocultural brasileira: crianças em situação de rua, crimes ecológicos, mulheres vio-lentadas, sem-terra e sem-teto. / Uma história feita por mãos negras, da ativista com mestrado incompleto em Comunica-ção Social Beatriz Nascimento – coletânea de textos da autora em que se debate a presença negra na sociedade brasileira que deve ser refletida para além do prisma econômico, histórico, político, social adentrando a uma perspectiva existencial;• Ópera de três reais (1998): versão que atualiza a moeda e as manchetes político-sociais brasileiras. / Sete histórias de ne-gro, do doutor em História Ubiratan Castro – sete histórias de negras/os baianas/os, apresentando estratégias de resistência ante os percalços cotidianos; 49RÉGIA MABEL DA S. FREITAS• Sonho de uma noite de verão (1999): adaptação do clássico homônimo
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